Daniel Sampaio: “O que interessa é a família enquanto espaço emocional e como é que as pessoas se relacionam umas com as outras”

Carolina Neto e Luana Augusto (Universidade Lusófona)

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Os jovens casam-se cada vez menos mas “o desejo de ter filhos continua a existir”. Difíceis são as “condições económicas para os ter”, argumenta Daniel Sampaio. O psiquiatra de 75 anos investiga e desenvolve terapia familiar em Portugal há décadas. Em entrevista ao REC, deixa um alerta aos pais: nunca se devem “demitir do seu papel de educadores, mesmo com filhos já crescidos”.

“Subam, subam, é aqui em cima!”, ouviram as jornalistas do REC, mal transpuseram a porta do prédio cor de rosa de quatro andares, em Lisboa, onde vive Daniel Sampaio. O psiquiatra recebeu-as na sala de estar do seu apartamento, de soalho castanho escuro brilhante. Autor de mais de 30 livros e um dos responsáveis pela introdução da terapia familiar em Portugal, define a família como um espaço emocional de relações, e aponta “os problemas de controlo por parte dos pais e de autonomia por parte dos filhos” como os principais motores de conflitos. A solução? Ouvir, ouvir, ouvir. Porque “os pais, muitas vezes, e os professores, também, não ouvem as pessoas novas”, afirma. A entrevista terminou como começou, com sorrisos e amabilidade.

Áudio: ouça a entrevista na íntegra

Existem configurações familiares que se afastam das tradicionais, como é o caso das famílias monoparentais, das reconstituídas ou das adotivas. O que define uma família?
A definição moderna de família é um espaço emocional. Um espaço em que as pessoas têm diversos tipos de ligações. Existem ligações de sangue, entre pais e filhos, mas também existem ligações emocionais numa família de adoção ou numa família em que há padrastos e madrastas. O que interessa é ver como é que as pessoas se relacionam umas com as outras e como é que as emoções, positivas e negativas, se podem entrecruzar de modo a dar mais bem-estar.

Mas tem havido uma evolução daquilo que se entende por família…
O conceito de família tem evoluído muito, particularmente a partir dos anos 60 do século XX. Antes, o casamento era muito mais estável. Até 1960, aproximadamente, a mulher estava em casa a tomar conta dos filhos e o homem saía para trabalhar. Quando as mulheres foram para o mercado de trabalho, apareceu também a contraceção, ou seja, a família pôde planear os filhos, porque antes os filhos que apareciam eram por acaso, ou por ordem de Deus, para as pessoas religiosas. A partir do momento em que se começou a fazer planeamento familiar, a família mudou. Passou a haver menos filhos, o elo conjugal entre o homem e a mulher tornou-se mais frágil, e começaram a aparecer os divórcios, que hoje em dia são muito frequentes.

Depois, apareceram outras configurações familiares. Famílias pós-divórcio, famílias pós-morte de um dos cônjuges, e passou a haver famílias reconstruídas ou reconstituídas, usam-se os dois termos. Passou também a haver famílias monoparentais e, mais recentemente, passou a haver famílias de casais do mesmo sexo, que é uma mudança já do século XXI, quando os casais do mesmo sexo puderam casar e adotar crianças. É uma nova forma de família, muito diferente do que era na primeira metade do século XX. Mas em todas elas, o que interessa é a família enquanto espaço emocional e como é que as pessoas se relacionam umas com as outras.

Daniel Sampaio recebeu as jornalistas do REC na sua sala de estar. Foto: Carolina Neto
Daniel Sampaio recebeu as jornalistas do REC na sua sala de estar. Foto: Carolina Neto

Qual é o papel do jovem no seio de uma família?
O jovem no seio de uma família é um adolescente ou um adulto jovem, é aquele que vai abrir caminho para uma nova família. A adolescência é uma época de descoberta e os adolescentes colocam desafios muito importantes à família, porque querem ser autónomos, querem seguir a sua vida, fazer a sua trajetória, mas, ao mesmo tempo, emocionalmente ainda estão muito dependentes dos pais. Muitas vezes, nesse período, há um conflito entre a autoridade dos pais e o desejo da autonomia dos filhos.

Existe tensão?
Sim, na adolescência há tensão entre pais e filhos. Os pais costumam dizer que é a época mais difícil. Mas na maioria dos casos corre bem, ou seja, há turbulências, mas se a família tiver capacidade de perceber esse movimento de autonomia, acaba por ser um período de desenvolvimento bom porque é um período muito criativo e de descoberta. Nas famílias saudáveis, os pais mantêm alguma autoridade, mantêm algum poder de decisão, mas os filhos também têm capacidade de ser autónomos até que, mais tarde, (hoje em dia lá para os 30 anos), podem ser independentes e constituir uma nova família.

E para a maioria dos jovens, a família é um lugar de aprisionamento ou um lugar de conforto?
A família é essencial para as pessoas novas, para as crianças e para os adolescentes. Todos os estudos apontam que a principal influência nas crianças e nos adolescentes são os seus pais e, portanto, aquilo que os pais devem fazer é nunca se demitir do seu papel de educadores, mesmo com filhos já crescidos. O que acontece muitas vezes é que, devido a esse conflito que há entre a autonomia e a necessidade de alguma autoridade dos pais, aparece turbulência, aparecem conflitos, mas, de uma forma geral, [no interior da família] é mais uma sensação de conforto que as pessoas têm, de bem-estar, do que de conflito.

Que impacto teve a pandemia nas relações entre os jovens e as suas famílias?
Bem, teve um impacto muito grande. Nas famílias que já tinham uma boa comunicação, em muitos casos, foi uma experiência boa – as pessoas poderem estar em conjunto e conhecerem-se melhor. De uma forma geral, como as pessoas se afastaram mais fisicamente e houve menos contactos, e os estudantes tiveram muito tempo em casa, excessivamente em casa, a pandemia teve uma consequência negativa sobre a saúde mental das pessoas jovens.

Os jovens podem precisar de terapia sem o saberem?
Sim. Eu não sou a favor de que todas as pessoas tenham de fazer terapia. Para se fazer uma terapia é preciso ter motivação. Agora, o que acontece é que há pessoas que não percebem bem o que se passa ao nível da sua saúde mental. A isso chama-se literacia em saúde mental, ou seja, nós temos que ter campanhas e sessões que ajudem as pessoas a descodificar os sinais de mau estar psicológico, porque pode até haver ferimento psicológico ou mal-estar, mas isso não é uma doença. O importante é perceber, quando esse mal-estar se prolonga, que podemos estar na presença de uma doença e, nessa altura, é que as pessoas devem procurar ajuda.

Quando o procuram para fazer terapia familiar com jovens envolvidos quais são os problemas mais frequentes?
São os problemas de controlo por parte dos pais e de autonomia por parte dos filhos. Os adolescentes não podem ser deixados “ao deus dará”, a fazer tudo o que lhes apetece, mas, ao mesmo tempo, têm que ter alguma autonomia. Os adolescentes que ficam demasiado dependentes dos pais, não crescem emocionalmente. O problema principal é esse: a autonomia que o jovem quer ter, o querer fazer tudo, e o controlo que os pais acham que devem ter.

Uma vez perguntei a um jovem de 16 anos como é que definia uma adolescência normal e ele disse-me, “adolescência normal é pedir tudo e ficar com aquilo que os pais dão”, o que é uma boa definição. É natural que um jovem de 16 anos peça muita coisa – para sair muito à noite, para comprar roupa, para estar com os amigos, para não vir a casa, para beber… Várias coisas que se experimentam na adolescência, mas é preciso, depois, os pais dizerem “não vás por aí”. Os pais têm um papel de controlo importante e é esse equilíbrio que é preciso manter.

Sendo assim, que conselhos costuma dar?
O conselho principal é ouvir muito as pessoas. Os pais, muitas vezes, e os professores, também, não ouvem as pessoas novas. Em toda a minha vida procurei passar esta mensagem: as crianças e os adolescentes têm coisas para dizer sobre a sua própria educação. Mesmo uma criança muito pequena tem uma noção do que é que é importante para ele ou para ela, e na adolescência isso é decisivo. Em vez de dizermos “a regra é esta!” e impormos uma regra, é preciso dizer “temos aqui uma regra que é importante, como é que vamos pôr a regra em funcionamento?”.

Por exemplo, o jantar é um momento em que muitas famílias se reúnem. Mas as pessoas estão muito ocupadas. Os pais chegam tarde do trabalho, é preciso fazer o jantar, arrumar a casa, se houver irmãos mais novos, dar banho aos irmãos mais novos, há uma série de trabalhos escolares. Então, o que é importante é saber como é que nos vamos organizar para às oito e meia estarmos todos a jantar. Porque, se não se faz isso, há um que está a jogar um jogo eletrónico com os amigos, “não quero interromper”, o outro está a ver televisão, “não quero interromper”, a mãe está na cozinha ou o pai não consegue acabar as coisas a tempo… A família tem de se organizar para estar algum tempo em conjunto. Para isso, é preciso perceber como é que cada um pode contribuir para que isso aconteça.

Quando o jovem sai de casa, que mudanças existem na relação com os pais?
Bom, em primeiro lugar, quando muda de casa, é preciso saber se vai sozinho ou acompanhado. Quando um jovem sai de casa sozinho, é um movimento de libertação, é um movimento de descoberta e de autonomia. Depois, se ele tem um companheiro ou uma companheira é preciso introduzir esse companheiro na família. E esse é o movimento que é preciso fazer, ou seja, o jovem casal tem que se relacionar bem um com o outro, como é desejável, mas cada um deles deve ter relações com a sua família de origem.

Nem sempre isso é fácil, porque às vezes os pais não gostam do parceiro ou da parceira do filho e, portanto, o jovem casal deve ter algum cuidado na forma como aparece junto da sua família, ou seja, deve manter algum contacto com a sua família de origem, mas deve sempre lutar pela sua emancipação, pela sua autonomia. Quando nasce um filho desse casal, muitas vezes o que acontece é que a família de origem se aproxima demasiado do neto e há novamente conflitos. Nessa altura, é preciso apoio dos pais de um lado e de outro, mas é preciso que o casal saiba estabelecer algum limite com as respetivas famílias de origem.

Que conselhos daria a um jovem que quer ser autónomo, mas não consegue, por exemplo, comprar ou alugar uma casa, vendo-se obrigado a permanecer na dependência dos pais?
Agora cada vez acontece mais isso, porque as casas estão muito caras e porque muitas vezes não há empregos, portanto, nós temos muitas pessoas licenciadas nessa situação. O conselho que eu dou é que permaneça em casa dos pais, mas lute pela sua autonomia, porque há muitas formas de estar em casa dos pais. Uma pessoa, por exemplo, de 25 anos, que já podia viver sozinha, mas permanece em casa dos pais, é muito importante que colabore na vida doméstica, que ajude em casa… Não é a mãe nem o pai que têm de tomar conta dele. Se tiver uma semanada ou uma mesada, deve gerir bem o dinheiro e não estar sempre a pedir dinheiro aos pais. Ao mesmo tempo, deve ter momentos em que não está em casa. Pode ir ficar na casa de um amigo, pode passar férias com pessoas diferentes, de modo a que, ao mesmo tempo, vá cultivando a sua vida autónoma.

Casar de forma oficial ainda faz parte do horizonte habitual de desejos de um jovem?
Cada vez menos. Cada vez há menos casamentos. O que acontece é que as pessoas, às vezes, vão viver juntas e às vezes casam mais tarde. Eu tenho tido muitas situações em que, por exemplo, o casamento se dá com o nascimento do primeiro filho. Portanto, digamos que o projeto de casamento clássico com papéis e com uma cerimónia religiosa é, hoje em dia, menos frequente. As pessoas fazem uma experiência de vida em comum.

Ora, o que é importante, é pensarmos no relacionamento do casal. E essa é uma área de que se fala pouco em Portugal. Devia começar a falar-se logo na escola secundária. Sobre temas como a educação sexual, por exemplo, a questão da violência no namoro, o uso do álcool e das drogas. Para, quando o casal for viver sozinho, já ter algumas competências para lidar com essas situações.

E quanto a ter filhos, o que pensam os jovens?
Os filhos agora aparecem sempre depois dos 30 anos e antigamente as pessoas tinham filhos aos 24, 25. O desejo de ter filhos continua a existir, mas não há, muitas vezes, condições económicas para os ter. Era preciso fazer política, por exemplo, de apoio aos jovens casais, com rendas mais baratas, com creches gratuitas, para que ter um filho se torne possível. Neste momento, com uma gravidez vigiada, uma mulher pode ter um filho perto dos 40 anos, o que antes não era possível. [Também por isso], as pessoas têm tendência para ter filhos mais tarde. O que em termos do casal não é mau, mas depois se torna mais problemático quando os filhos chegam à adolescência. As pessoas devem ter filhos relativamente cedo.

O que é que não foi referido nesta entrevista sobre jovens e família que considera importante mencionar?
Eu acho que o principal problema é que os adultos têm muitos preconceitos. Talvez o preconceito mais importante seja pensar que as pessoas novas não querem falar com as pessoas mais velhas e só querem falar entre si. Evidentemente que as pessoas mais novas gostam muito de falar entre si e de terem amigos. É muito importante. Da minha experiência de quarenta e cinco anos de vida profissional, quando nós criamos um clima em que os jovens podem falar com as pessoas mais velhas, os jovens gostam de falar.

Isto é muito importante para pais e para professores, porque os pais acham que os filhos na adolescência não querem falar com eles e muitos professores acham que os alunos não querem falar com os professores. O que se verifica é que falam com uns professores e não falam com outros. Isto tem a ver com a forma como o professor se relaciona e a forma como os pais também se relacionam com os filhos, porque há muitos pais que têm um ótimo relacionamento com os filhos na adolescência. Há turbulências, há discussões, há proibições, há castigos, há ameaças de os filhos saírem de casa. Isso passa-se em todas as famílias, mas nas famílias que funcionam bem, isso dura muito pouco tempo.