A pala preta colocada sobre o olho direito esconde os ferimentos da luta. Mas Jérôme Rodrigues não desiste da causa. Proclamado o Camões francês, o lusodescendente é o principal rosto do movimento dos coletes amarelos.
O dia 26 de janeiro de 2019 seria mais um sábado de protestos dos coletes amarelos em Paris. Jérôme Rodrigues seguia até à Bastille, já no final da tarde, com os mais de dois mil protestantes. O telemóvel numa mão e uma sandes na outra. O live do Facebook já tinha começado. “Que violência”, afirma ironicamente enquanto revê o vídeo no tablet. Um protesto aparentemente calmo, mas tenso, com “algumas picardias”, descreve Jérôme. Fizeram-se soar alguns disparos da polícia. “Vê?”, aponta o lusodescendente para o ecrã quando rebenta a primeira granada.
A tranquilidade perdeu-se com o barulho das armas policiais. Jérôme apelava à ordem: “Para trás”, pedia aos colegas. Uma outra granada foi lançada, passando de raspão por Jérôme. Mesmo assim, as imagens registam o colete amarelo a cair no chão. Um grupo de protestantes instantaneamente reuniu-se à volta de Jérôme a pedir auxílio. “Foi atingido no olho!”, chamavam em socorro. “Não senti dor alguma. Estava cheio de frio”, relembra o lusodescendente. No vídeo ainda ouvimos Jérôme, lúcido, a gritar pela família. A emissão é cortada minutos depois. Milhares de pessoas assistiram, em tempo real, ao momento em que Jérôme Rodrigues, aos 40 anos, perdeu o olho direito.
“Não sei bem o que aconteceu a partir daí”, afirma o colete amarelo. Jérôme perde a consciência durante quase quinze horas. Foi desde esse momento que o protagonismo de Jérôme disparou. “Sou tema de conversa durante todo o fim-de-semana”. Depois de uma operação de quase cinco horas, Jérôme acaba mesmo por perder a visão do lado direito. Debaixo da resina ainda tem uma pequena, mas disfuncional, parte do olho. “Não vejo nada”, bate três vezes num tlim tlim tlim que soa a vidro.
Jérôme tentou tranquilizar os apoiantes ao publicar uma fotografia nas suas redes sociais, um dia depois do acidente. Frágil, encontrava-se sentado numa cadeira de rodas e com um penso a esconder o olho ferido. “Família! Não perdemos nada! O que não te mata torna-te mais forte!”, escreve a acompanhar a imagem que seguia no Facebook.
Apesar do trauma, Jérôme não desistiu da luta e marca presença na manifestação de sábado seguinte, onde foi acolhido por milhares de coletes amarelos que gritavam pelo seu nome. “Receber toda aquela energia foi o melhor remédio”, descreve Jérôme. “Podem cortar-me um braço ou uma perna, mas eu não vou acabar com o movimento. Ainda tenho mais motivação para me manifestar”, esclarece na altura em declarações à agência Lusa.
A gota de gasóleo
O movimento dos coletes amarelos é um protesto apartidário, organizado esporadicamente por um grupo de cidadãos que habitavam nos subúrbios de França. Originalmente o grupo contestava o aumento do imposto sobre os combustíveis, o que afetava a grande massa de trabalhadores que se deslocavam diariamente das periferias até à cidade. Mas para Jérôme Rodrigues essa foi apenas a “gota de gasóleo”.
Cronologia: Movimento dos Coletes Amarelos
A explosão que se seguiu foi criada por um culminar de insatisfação perante a governação do atual Presidente da República francês. Para Jérôme o movimento dos coletes amarelos transformou-se numa revolta de todos os “trabalhadores invisíveis” em França: “Todos aqueles que fazem os trabalhos que mais ninguém quer fazer, como trabalhar nas obras, fazer limpezas, ou apanhar o lixo. Eles não são reconhecidos como seres humanos, nem enquanto trabalhadores”, explica. Emmanuel Macron tornou-se, assim, o principal alvo dos manifestantes.
Só resta a fraternidade
Jérôme Rodrigues abre a pequena “caixa das memórias”. “Isto é uma bala de borracha”, o colete amarelo retira um primeiro objeto. A arma de defesa assusta pelo gordo formato. São 60 gramas de borracha preta que lançada pode atingir os 300 km/h. “O impacto da bala de borracha assemelha-se a um atropelamento”, afirma Jérôme.
De seguida, o lusodescendente pega numa granada revestida por minúsculos pedaços de borracha. Por norma, esta arma contém 25 gramas de trinitrotolueno, um material altamente explosivo.
O colete amarelo ainda hoje não sabe qual das duas armas o feriu, uma vez que o processo de investigação continua em curso. Independentemente do objeto utilizado, Jérôme mostra-se indignado com a resposta agressiva das forças policiais francesas.
“Eu era um tipo simpático”, recorda enquanto arruma as memórias. Todos na manifestação conheciam o lusodescendente de longas barbas cinzentas e de pala no olho ferido, como um Camões francês. Acompanhado pelo telemóvel e uma câmara GoPro, Jérôme entrevistava os vários protestantes. “Como te chamas? O que fazes? Porque estás aqui?”. Eram estas três simples perguntas que rapidamente cativavam a atenção dos coletes amarelos. “Eles só queriam deixar de se sentir invisíveis. E eu queria humanizá-los”, conta Jérôme.
As infindáveis horas de vídeos, posteriormente publicadas nas suas redes sociais, mostram a popularidade do lusodescendente nas ruas parisienses. A “família Jérôme”, como o colete amarelo carinhosamente apelida, cresce também no Facebook, contando hoje com 127 mil seguidores.
“E depois levo um tiro”, Jérôme regressa ao episódio que mudou a sua vida. “Então um tipo simpático, que tratava todos por igual, que até apelava pela paz, leva um tiro no olho?”. O sentimento de revolta intensificou-se no dia em que Jérôme foi ferido. A ele junta-se a família de coletes amarelos: “Claro que não gostaram”.
Jérôme desvia novamente o olhar para a caixa das memórias em cima da mesa: “Isto é o símbolo da nova Democracia em França”, aponta. “A França sempre foi um exemplo de revolução. Mas hoje é o reflexo de repressão”. A liberdade e a igualdade que a França prometeu a Jérôme perderam-se com o olho. Só resta a fraternidade dos seus coletes amarelos.
A causa de uma vida
Filho de pai português e mãe francesa, Jérôme Rodrigues cresceu sempre muito ligado a Portugal. Não esquece as histórias que lhe contavam sobre a Revolução dos Cravos, lamentando não ter feito parte da luta portuguesa. No entanto, alia-se ao movimento dos coletes amarelos pela mesma sensação de contestação. “Não sou o líder”, esclarece, assegurando que o movimento não tem chefia. Mas é um homem de causas. “Esperava por um momento assim há muito tempo”, confessa.
Jérôme reconhece que existe um ‘pré’ e um ‘pós perda do olho’. “A minha vida foi abaixo. Perdi quase tudo”, desabafa. Jérôme deixou de falar com alguns familiares. “Não percebiam a minha luta”, justifica. Foi declarado como inválido e, por isso, ficou também desempregado. “Toda a gente reconhecia-me. O governo também inventou mentiras sobre a minha vida a dizer que batia na minha mulher”, o que só prejudicou a sua imagem. De herói passou a monstro. Assegura que a sua vida “nunca mais voltará ao normal”. Mas a saúde mental foi a mais prejudicada. “É complicado”, confessa.
Jérôme está hoje impedido de entrar em Paris e, consequentemente, de acompanhar o crescimento da filha mais nova de um ano. Vive escondido a mais de 600 km da capital francesa, numa casa partilhada por uma dezena de amigos também eles antigos coletes amarelos. “Foi a fraternidade dos coletes amarelos que me deu teto e comida”, afirma.
A dedicação ao movimento cegou-o. Hoje reconhece os erros do passado, mas recusa desistir da luta acreditando na reincidência do movimento “com uma outra forma”. “Os protestos ganharam pouca visibilidade porque os franceses ficaram com medo”, tenta explicar.
Apesar de estar mais distanciado, Jérôme não se consegue desligar. “Aquelas pessoas dão-me esperança. Custa-me deixá-las”, lamenta ao rever os vídeos de há dois anos. O telemóvel só tem seis meses e mais de mil chamadas não atendidas, fora as centenas de mensagens por abrir. “Durmo muito pouco a pensar nos coletes amarelos”, confessa. Mas antes de regressar precisa de se reerguer.