Há uma ponte que permite a passagem da escola para a vida profissional: chama-se Silos Contentor Criativo. Desde 2010 que o Silos Contentor Criativo é casa de vários talentos. A ligação à Escola de Artes e Design permitiu reanimar a tradição artística e projetar novos desafios.
Não muito longe do centro da cidade das Caldas da Rainha erguem-se cinco silos que outrora armazenavam cereais. 30 metros de altura não chegam para esconder a linha de caminho-de-ferro que os secunda, nem tão pouco o edifício de oito andares que acolhia as restantes instalações da antiga Moagem Ceres, construída na década de 60 do século XX.
O sol, já depois do almoço, convida à permanência no exterior, mas uma espécie de chuva artificial empurra os repórteres do REC para o interior. O ilusório chuvisco não é mais do que os pingos de água deixados cair pelas ferramentas dos limpadores de fachadas. São três, lá em cima, pendurados e pequeninos. Parecem empenhados em exercícios de alpinismo como forma de requalificar as paredes do parque industrial que, desde 2010, acolhe o Silos Contentor Criativo, um espaço onde jovens artistas desenvolvem o seu trabalho em pequenos ateliers.
“Somos uma espécie de interface entre a Escola Superior de Artes e Design [ESAD] e a comunidade das Caldas da Rainha”, afirma Nicola Henriques, um dos criadores do projeto que nasceu dentro da academia, no âmbito do curso de Design de Ambientes da ESAD. As atividades desenvolvidas e a estrutura de apoio aos artistas pretendem funcionar, refere, como “um degrau que fica entre a vida académica, a incubação e a vida ativa”.
“O aluguer de espaços a baixo custo foi a ideia central que guiou esse trabalho académico, sempre no sentido de fixarmos criativos ou potenciarmos o setor criativo”, refere o antigo professor de educação física. O espaço dispõe, atualmente, de 20 estúdios e ateliers, aos quais estão associados 28 jovens criativos. O número de estúdios disponíveis sofreu uma redução acentuada desde a criação do projeto, mas isso “não significa perda de qualidade, bem pelo contrário”, refere Nicola Henriques: “Possuímos uma estabilidade económico-financeira que permite dar mais condições às mesmas pessoas que temos diretamente ligadas a nós”.
O que começou apenas por um trabalho académico acabou num conceito inovador. Nicola Henriques recupera as lembranças desse exercício que se tornou um ato fundador: “O professor deu-nos um briefing e nós visitámos a estrutura. Na altura, eu e o meu grupo de colegas propusemos um pop up – creative up. Apresentou-se o trabalho e, dois meses depois, ao passar pelo local, perguntei ao responsável se o espaço estaria para aluguer. Iniciou-se a negociação e chegou-se a um acordo”.
A marca Silos, os parceiros e os projetos futuros
O Silos Contentor Criativo encontra-se intimamente ligado à Associação Destino Caldas, uma entidade sem fins lucrativos que ao longo dos anos tem juntado vários parceiros. A Câmara Municipal das Caldas da Rainha é um dos parceiros-referência ao conceder apoio financeiro anual e, juntamente com outras entidades públicas, cooperando em ações no exterior da Moagem Ceres, quer seja em mercados criativos, sessões de apresentação de portfólio ou estabelecimento de parcerias.
“Dispomos de uma licença para ocupação do espaço público. A Câmara Municipal ajuda, por exemplo, ao nível da energia elétrica, além de dispormos de uma rede de parceiros variada, desde associações ligadas às áreas criativas, entidades e empresas que, com os seus patrocínios, permitem-nos reduzir despesas na aquisição de materiais, até instituições de ensino superior, como a Universidade de Coimbra. Há uma rede local, regional, nacional e internacional que nos dá um suporte financeiro e material”, observa o atual diretor do Silos.
A marca Silos tem conquistado, de facto, notoriedade, tendo sido considerada, há cerca de dez anos, de interesse municipal. O reconhecimento da atividade artística desenvolvida na antiga fábrica de moagem de trigo tem igualmente contribuído para a validação da cidade enquanto território criativo. Em 2019, a UNESCO adicionou as Caldas da Rainha à Rede de Cidades Criativas, um selo que premeia o artesanato e a arte popular. Volvidos quase 14 anos desde a sua criação, os números ajudam, também, a caracterizar a dimensão do projeto: 400 residentes que alugam espaços para criarem e produzirem em períodos que variam entre seis meses a três anos, além dos mais de 4500 espetadores atraídos por eventos como conferências, seminários, concertos, peças de teatro ou exposições.
No contexto dos projetos futuros, a ideia de autonomia financeira constitui um objetivo prioritário. “Sonhamos com a total autonomia financeira dentro de alguns meses”, ambiciona Nicola. O caminho, refere, pode passar, por um lado, pelo licenciamento da cafetaria como um importante contributo para a sustentabilidade do projeto e, por outro, por uma uma missão mais híbrida assente no fator crítico enquanto forma de promover a criatividade nos setores da sustentabilidade, das energias renováveis, da economia circular, isto é, no âmbito das novas áreas que estão a surgir e que já marcam o futuro imediato”.
Partir e regressar para criar…em liberdade
A autonomia financeira da plataforma artística até encontra correspondência com a autonomia individual dos artistas residentes, talvez não tanto do ponto de vista financeiro, antes no plano da liberdade criativa: autonomia e liberdade para criar parecem dois vocábulos que caminham no mesmo binário.
Mas o que significa liberdade artística? Para Joana Ribeiro representa “ausência de condicionantes, uma produção sem limites, sem dificuldades e obstáculos para poder realmente haver exploração total”. Existe, porém, o outro lado da moeda, o das condicionantes, que a jovem criativa não ignora: “Essas condicionantes, muitas vezes, ajudam a definir caminhos e até orientar um trabalho. Eu própria estou num caminho de encontrar e procurar essa liberdade. Tem muito a ver com aquilo que eu sou, aquilo que vou conseguindo descobrir e fazer”.
Joana Ribeiro nasceu e cresceu nas Caldas da Rainha, tendo saído para o Porto para estudar arquitetura. “Uma pessoa sente muito a necessidade de sair porque sente que pode explorar mais a sua identidade para além daquilo que vê e que a rodeia”, observa.
O regresso às Caldas da Rainha parece, porém, estar diretamente relacionado com o impacto do seu trabalho e a participação na comunidade. “Acabamos por ter mais impacto numa comunidade mais pequena, ter mais voz e oportunidades de participar ativamente na comunidade”, afirma Joana Mundana (nome artístico) enquanto explora, no seu atelier, no 2º piso do Silos Contentor Criativo, outros materiais e formas de se exprimir.
Se as exposições são os contextos em que se sente mais livre para criar, pois dispõe de mais espaço expositivo, o ambiente digital parece funcionar como a tela através da qual também se pode ilustrar e, sobretudo, mostrar sem fronteiras.
“Dá-nos mais espaço de exposição e também nos acaba por dar mais liberdade de produção. Ou seja, eu vivia numa casa muito pequenina, não tinha espaço para ter um cavalete para pintar. No entanto, tinha um iPad com todas as cores do mundo, com todos os pincéis. Eu mostrava o meu trabalho a pessoas noutra parte do mundo e recebia o tal feedback e a possibilidade de me expor e de vender até o meu próprio trabalho. Isso é uma vantagem”, afirma a ilustradora.
Trata-se de um potencial que, na opinião de Joana, também favorece uma certa alienação do mundo sensorial, “diminuindo bastante o contacto com os materiais e até mesmo com as pessoas”.
Do atelier para a rua em busca da satisfação
No mesmo 2º piso do Silos encontra-se o atelier de João Margarido, natural de Lisboa e artista de cerâmica. Encontrou o seu percurso enquanto artista nas Caldas da Rainha, onde estudou e decidiu, depois, permanecer devido “às condições e à qualidade de vida que a cidade oferece”.
Mais recentemente descobriu um outro campo de interesse, a pintura mural. Talvez por isso afirme que a rua é o ambiente onde se sente mais valorizado: “Onde gosto mais de ter peças é na rua, porque são peças que interagem com todas as pessoas e todo o tipo de pessoas. Isso é o que me dá mais gozo”.
Para o jovem artista de 32 anos, liberdade artística significa conseguir “criar do zero aquilo que apetece criar no momento”, concretizando: “A liberdade, no meu trabalho, vem muito quando eu não estou a refletir demasiado sobre o que estou a fazer. Acontece de uma forma mais espontânea, mais natural”.
Em termos de trabalho e de relacionamento com o público e os clientes, o antigo estudante da ESAD salienta que “a boa experiência de trabalho no que toca à liberdade ocorre quando o cliente gosta de tudo à primeira, quando fica satisfeito no primeiro momento de contacto”.
João divide o atelier com a sua mulher, Constança Bettencourt, um espaço decorado com rascunhos, sprays, tintas, panos, obras inacabadas e um pouco de desorganização. “Estamos muito virados para a pintura de morais e é aí que também queremos continuar a crescer como coletivo. A Constança está agora a iniciar-se no mundo da tatuagem. Hoje em dia a maior parte dos artistas faz várias coisas”, refere o também designer de produto.
Coragem para abrir portas que se podem fechar
Descendo ao 1º piso, o ruído da máquina polidora sugere a proximidade do atelier de Liliana Alves, de 40 anos, designer de joalharia e artista a tempo inteiro, como a Joana, o João e a Constança. Divide o tempo entre os produtos que dão corpo à sua marca e os workshops que captam público em Portugal e no estrangeiro.
O Silos Contentor Criativo foi o local encontrado para desenvolver o processo criativo, a tal liberdade que, no caso de Liliana, significa “estar um bocadinho fora de preconceitos” e disponível para transmitir sentimentos: “Poder expressar aquilo que eu sinto, aquilo que eu penso, no meu caso, através do meu trabalho. Eu acabo por levar mensagens com o meu trabalho. Eu acho que ter liberdade criativa é também ter a coragem para o ser”.
A palavra coragem sugere uma espécie de firmeza diante do perigo ou do risco, algo que a designer natural das Caldas da Rainha considera ser importante para combater portas que se podem fechar.
“As portas que se possam fechar são também pontos de partida para o nosso crescimento e evolução. Por vezes estamos focados num projeto que queremos muito, sendo que, quando isso não se concretiza, outras portas se podem abrir, às vezes até portões para outras situações. É preciso coragem para dizer ok, não deu agora, vamos para outra”, afirma.
Cheira a arte na cidade
História, património, cerâmica, faiança, artistas célebres, de Rafael Bordalo Pinheiro a José Malhoa, uma Escola Superior de Artes e Design, projetos artísticos disruptivos e jovens que carregam consigo o sonho de se tornarem artistas. Parece que cheira a arte nas Calda da Rainha. Liliana Alves confirma: “Sim, completamente. Há pessoas que acham que sim, outras que não. Eu acho que é peculiar, se não agrada a todos, é porque é bom, mais por aí. E também acho que há espírito crítico, que é bom no sentido de nos fazer evoluir”.
Joana Ribeiro considera, por sua vez, que existe uma intenção de concretizar esse imaginário, reconhecendo, porém, que é mais uma ideia oriunda do exterior do que uma realidade da própria cidade. “Acho que podia ser muito mais esse espaço para os que cá vivem”, afirma, não deixando de sublinhar que “uma cidade que se diz tão criativa e tão das artes deveria evidenciar mais essa diferença”. Organizar mais eventos, proporcionar mais oportunidades e espaços para que os projetos possam adquirir maior visibilidade são algumas soluções defendidas.
A ESAD constitui, na opinião de João Margarido, um dos mais importantes motores dessa ideia que associa as Caldas da Rainha às atividades artísticas e à formação de jovens artistas: “É uma cidade relativamente pequena e os jovens acabam por trazer essa energia e esses projetos. Importa continuar a valorizar aquilo que é património da cidade, mas há que valorizar o que se cria de novo e aquilo que não se espera que está a ser criado, o que aí vem”.
O projeto Silos Contentor Criativo parece contribuir para o objetivo de transformar definitivamente as Caldas da Rainha num autêntico hub artístico, ora acolhendo oficinas de jovens artistas que se encontram numa fase intermédia, saídos da escola, mas não totalmente integrados no setor, ora acolhendo as demais manifestações artísticas, como residências, seminários, concertos, exposições, peças de teatro e demais espetáculos performativos.