Licenciado em jornalismo pela Escola Superior de Comunicação Social, o jornalista Nuno Viegas dedica a sua atividade, desde 2013, a contar histórias em áudio. Colaborou em diferentes publicações, quer imprensa física, radiofónica e online, e atualmente faz parte do projeto de jornalismo independente Fumaça. Neste sentido, considerando o ângulo editorial do núcleo em que se encontra inserido, Nuno descreve a liberdade de imprensa no jornalismo português.
No seu ponto de vista, existe alguma restrição sobre temáticas a abordar no jornalismo?
Há grandes padrões de desconforto em que há instituições muito populares, como é o caso da polícia, por exemplo, em que fazer críticas estruturais à razão de ser do organismo é algo que se faz com bastante dificuldade. Porque a realidade da coisa não é tanto tu não podes falar disto numa redação. É vai ser incrivelmente difícil encontrares uma história para contar.
Quando vês por exemplo que os agentes da polícia de segurança pública não podem dar uma entrevista sem autorização da direção nacional da PSP, portanto estão sobre a “lei da rolha”, e no caso do Fumaça a direção nacional da PSP recusa-se a aceitar a entrevista seja por parte da própria direção nacional, seja por cargos de chefia média o que é que acontece? Qual é o resultado de uma instituição vedar os seus profissionais para eles independentemente não poderem conversar com redações?
Isto impede que se fale no assunto na prática. A nós que temos muito tempo para encontrar uma história não impede, porque quer dizer que temos tempo para encontrar vinte ou trinta agentes que falem connosco de forma ilegal, que vêm ao nosso estúdio com o risco de serem sancionados, se forem apanhados. Mas numa redação que está dependente de um ciclo de produção mais curto o que isto implica, e as instituições têm noção disto, é que as histórias são abandonadas.
Alguma vez lutou pela publicação de um artigo ou de uma história que considerasse relevante?
Na verdade, acho que não acontecia muito, também porque tinha um cargo de relação bastante imediata com a publicação, ou seja, eu editava noticiários, estava em antena diretamente, portanto não há bem um ponto de filtragem entre o momento em que eu decido que vou dar uma notícia e a notícia sai. Publicava, depois podíamos discutir.
Já se arrependeu da publicação de algum artigo?
Eu nunca me arrependi da publicação de uma história. Já tive reações muito desagradáveis. Já tive muitos, mais do que gostaria, trabalhos jornalísticos que publiquei e recebi mensagens muito desagradáveis, seja a planta que morreu, que morra a minha mãe, ou não sei quê, ou que o demónio vá… as pessoas conseguem ser muito desagradáveis.
Quando publicámos uma série de entrevistas aqui no Fumaça sobre a prostituição, com pessoas favoráveis à legalização, a reação que tivemos, que eu recebi pessoalmente, a reação por parte de forças abolicionistas do PCP, por exemplo, ou de setores feministas abolicionistas, foi igualmente uma coisa escabrosa. Portanto, isso acontece muito.
Qual a sua perceção da liberdade de imprensa na atividade jornalística atual?
Eu acho que nós temos uma cultura de transparência democrática muito embrionária. Na cultura institucional tens dois veios, em que tens do lado do setor público do Estado um hábito enraizado de não disponibilizar informação, a que se tem direito. São documentos públicos a que podes aceder, se requisitares tens direito a receber estas atas, ou estes dados, ou estes números, não é? Perguntas e é suposto o Ministério da Saúde, ou o Ministério da Justiça, ou a Procuradoria-Geral da Justiça, ou a Câmara Municipal de Ourém a dar-te esta informação, para poderes fazer o teu trabalho, para poderes escrutinar o funcionamento do Estado. E não há esta cultura. Isto é, isto impossibilita imenso o trabalho, torna o trabalho desproporcionalmente mais difícil.
Há uma brutal falta de escrutínio de decisões políticas passadas. Se se quer falar com alguém que foi ministro da Saúde há dez anos, dizem-te “já estou há muito tempo afastado do setor, não vou falar do assunto”. Uma pessoa que tomou decisões estruturantes para o sistema de saúde, para a sociedade portuguesa, durante um período da nossa vida democrática, tem de estar disposto a dar explicações para o resto da vida dele. Tem que estar aberto a isso.
Quais são os principais obstáculos ao jornalismo de investigação?
Sinceramente, o financiamento. É ter dinheiro para pagar redações, para pagar jornalistas. Havia uma bolsa de apoio ao jornalismo, considerável em Portugal, e eram as bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian. Houve ou duas ou três edições dessas bolsas, antes da Gulbenkian acabar com elas. E eram bolsas com preferência a jornalismo com tempo, de investigação. Financiou uma série de trabalhos, ganharam tipo dez trabalhos por ano… acabou. Isto não é uma ameaça ao jornalismo de investigação? É a única linha de financiamento e agora acabou.
Em Portugal fala-se muito do problema do mercado, da dimensão do mercado, e é uma limitação que temos. Agora, não é uma limitação intransponível, porque o abismo em que estamos, em que nem há financiadores privados suficientes, ou com escala suficiente para sustentar as redações; nem há qualquer tipo de filantropia ou financiamento público para o jornalismo em Portugal. Isso torna inviável a liberdade de imprensa, é como criares um mecanismo de regulação, e dares-lhe três euros de orçamento anual, estás a ver? Existe liberdade de imprensa? Sim. Executa-se? Mais ou menos.
Porque depois não consegues formar redações, financiar trabalhos, ter equipas de jornalismo de investigação de dez pessoas, vinte pessoa. Agora esta concentração das “mega redações”, em Lisboa, largamente a ir beber no recrutamento a pessoas ou de Lisboa, ou de fora de Lisboa com um grau de poder económico em que conseguem sustentar vir estudar para grandes cidades, depois aguentar um estágio a receber uma ninharia em que tem de pagar para trabalhar até terem a carteira profissional, não é?
Porque depois uma das restrições brutais são as condições de trabalho dos jornalistas. É tu estares numa redação de atualidade e em vez de escreveres um artigo a cada dois dias escreves cinco, seis, sete por dia. É uma linha de montagem de produção noticiosa. E isto não é jornalismo, não dá, sei que não é, … o volume de publicação. É impossível estar-se a cumprir princípios deontológicos, a missão da imprensa; se nem sequer se tem a hipótese de se ambicionar cumprir a missão do jornalismo, não se tem liberdade de imprensa, não é?
Como se a ideia de jornalismo enquanto serviço público fosse desvalorizada?
Ah, sim. Não é só desvalorizada, é ignorada. É, por um lado, uma construção concorrencial do jornalismo. Eu gosto muito que as redações lutem umas com as outras, e que se fiscalizem, que se critiquem, que é uma coisa que falta muito no jornalismo português, leva-se muito a mal. E esta cultura acredito que não existe, principalmente em Portugal. Que cultura é que há? Qual é a cultura competitiva que há? É “vamos lançar esta notícia primeiro”; temos de ter o pus, temos que ser os primeiros a mandar o pus”. Eu faço esta pergunta muitas vezes a jornalistas, a camaradas meus, “para quê?”.
Tem um interesse competitivo. E é à volta disso que andamos a construir o jornalismo, há esforços em contrário – o Consórcio de Jornalistas de Investigação, que surgiu agora, que procuram fazer trabalhos mais colaborativos, de partilha de informação entre redações, de trabalho conjunto. Mas largamente a cultura é essa de guardar o exclusivo, ter informação do “esta é minha”, “é uma notícia só minha”, “esta vamos dar nós”, que não é útil para o jornalismo, não é útil para as pessoas.
Na sua opinião, os dados estatísticos relativos à liberdade de imprensa aplicam-se a realidade do jornalismo português?
Acho a estatística incrivelmente valiosa, como recomendador de análise. Agora tem de ser muito contextualizada. E o que é que temos de pensar? É: quando vais fazer ranking dos países com maior liberdade de imprensa e por aí fora, tens de escolher critérios de análise. Porque vai valorar as coisas. E se o teu critério de análise é “não há leis que limitem a criação de órgãos de comunicação social”, “não há censura prévia”, “o governo não decreta o fecho de órgãos por ordem”, … Ok. Agora, o que eu te digo é: é para aí que estamos a trabalhar? É para fazermos os mínimos?
Eu espero que não. Interessa-me muito pouco conversar sobre os media em Portugal, se a conversa que estamos a ter é “censura não!”. Concordamos todos, mas agora vamos falar de outras coisas que é, capacidade de execução de jornalismo, de tecido mediático. Isso é outra conversa. O erro é desconectar as duas coisas. É dizer “vamos medir a liberdade de imprensa sem olhar para a capacidade da imprensa de trabalhar” ou olhando, mas não valorando o suficiente. É inviável, não é? O problema da imprensa portuguesa em muitos momentos não é não ser livre ou não ter a potencialidade de ser livre; é ser inviável ser livre.