Um ponto de vista

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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E se o repórter, em vez de fotografar o rei a ser coroado, vira a câmara ao contrário e decide fotografar o povo que se amontoou para ver a coroação? Que é que isso nos diz sobre a cobertura jornalística do acontecimento? Uma brincadeira? Um comprometimento? Um falhanço? Ou… um outro olhar? 

«Pour voir le couronnement!», Ce Soir, 14 May 1937, p. 10 © Collections Fondation Henri Cartier-Bresson
(retirado de https://www.widewalls.ch/magazine/fondation-hcb-henri-cartier-bresson )

No início do mês de maio, quando uma enorme atenção mediática estava a ser dada à coroação do rei Carlos III na Grã-Bretanha, abriu em Paris uma interessante exposição fotográfica com curiosos pontos de ligação àquela cerimónia. Recordando uma outra coroação – a do rei Jorge VI – em Londres, no longínquo ano de 1937, foram mostradas em Paris as fotografias feitas nesse evento pelo famosíssimo Henri Cartier-Bresson (ver aqui. O jovem Cartier-Bresson começava a ser conhecido nos meios profissionais do fotojornalismo e foi fazer esse trabalho para o jornal comunista Ce Soir, que se publicava em França (ver imagem).

A grande novidade foi o ponto de vista que o repórter escolheu para retratar a cerimónia da coroação: por assim dizer, virou as costas ao rei e fotografou as pessoas (milhares, milhares delas) que se amontoaram nas ruas de Londres para a ver. “A outra coroação”, assim se chama a exposição fotográfica de Paris. Foi “a outra”, porque foi a de Jorge VI e não a de Carlos III. Mas também foi “a outra” porque escolheu um outro modo de olhar para uma coroação e de a fotografar. Dezenas de fotos belíssimas, com a marca de qualidade de um repórter / artista como foi Cartier-Bresson, mostram-nos homens e mulheres, grandes e pequenos, velhas e novos, pobres e ricas, uns sentados e outros às cavalitas, muitos de pescoço esticado a tentar ver a passagem do cortejo real (que não nos aparece em nenhuma fotografia…), muitos outros esticando por cima das cabeças umas pequenas varas com um espelho na ponta (uma espécie de periscópios que ironicamente fazem lembrar as “selfie-sticks” hoje tão em voga nestes ajuntamentos…), tudo a tentar olhar para aquilo que sabemos o que é mas que só vemos pelos olhos de quem está a olhar.

Os factos e… a verdade

Percorrendo aquela exposição – que constituía, afinal, a reportagem fotográfica com que se cobriu um evento noticioso – dei comigo a pensar como o trabalho jornalístico implica sempre, de modo mais explícito ou mais subtil, a escolha de um ponto de vista. O lugar para onde se olha e a partir de onde se olha. O lugar onde se coloca, e para onde se aponta, a câmara fotográfica ou a câmara de vídeo. O lugar onde se procura a informação considerada mais significativa para reportar sobre um determinado acontecimento. Uma escolha, sempre uma escolha. Com os seus riscos, mas, desejavelmente, com o genuíno propósito de informar o melhor possível, de ‘apanhar’ aquilo que mais importa.

Henri Cartier-Bresson escolheu um ponto de vista. Virou a câmara para onde ela não costuma estar virada. Colocou-a ao contrário, para mostrar aquilo que não costuma ser mostrado. Aliás, um pequeno painel colocado à entrada da exposição de Paris exibia uma série de primeiras páginas de jornais da época (franceses, ingleses, americanos) e todas, sem exceção, mostravam o rei de alguma forma: ou a chegar à catedral, ou a ser coroado, ou já com a coroa, ou a sair da catedral. Mas a primeira página do jornal Ce Soir não mostrava o rei: mostrava as pessoas que estavam a tentar ver o rei. Mostrava o povo. Era um outro olhar.

É claro que, numa ótica jornalística mais clássica, podemos considerar incompleta a cobertura de um evento como este apenas a partir de um ponto de vista. Quando os acontecimentos são mais complexos e precisam de ser olhados de diferentes modos, o trabalho do jornalista é olhar para eles de mais do que um ponto de vista, para os retratar adequadamente. Disso trata a velha (mas sempre válida) regra de “ouvir todas as partes” de algum modo implicadas num assunto, de obedecer sempre ao “princípio do contraditório”, para assim garantir um tratamento noticioso mais distanciado, mais rigoroso, mais objetivo – dentro do possível.  Mas também é claro que a simples apresentação de diversos pontos de vista não garante, por si só, um bom trabalho informativo. Evocando a velha máxima do relatório da Comissão Hutchins nos idos de 1947, a propósito da responsabilidade social dos média, podemos frisar que não basta relatar os factos com verdade; é preciso dizer a verdade acerca dos factos. E os pontos de vista contraditórios, sendo apresentados como equivalentes quando não o são, podem contribuir mais para desinformar do que para esclarecer. Muito se tem falado acerca disso, quando vemos publicações colocarem no mesmo plano cientistas e negacionistas, ou quando damos idêntico estatuto noticioso a alguém que diz que a terra é redonda e alguém que garante que ela é plana… Um jornalista que dá o microfone a estas duas versões, como se fossem ambas opiniões legítimas escudadas no direito à liberdade de expressão, e depois lava daí as suas mãos, supostamente por ter concluído assim o trabalho informativo, não presta de facto um bom serviço ao público… ou à verdade.

Olhar para o outro lado

Coisa parecida se diga a propósito da cobertura da guerra e das controvérsias que ela vem suscitando.  Numa guerra há sempre (pelo menos) duas partes em confronto e não é fácil informar sobre o que se vai passando, até porque as preocupações em controlar a informação e em lhe misturar propaganda em doses elevadas são mais do que conhecidas. Idealmente, devemos ter sempre os dois pontos de vista, um de cada lado do conflito – embora sem esquecer que eles não são necessariamente simétricos, sobretudo quando de um lado temos um invasor e de outro um invadido… Mas ouvir as duas partes, por si só, não garante uma cobertura noticiosa adequada e fiável. Recolher as declarações e informações de um lado e de outro é apenas um dos passos do processo informativo. Para além das declarações, é preciso ir aos locais, ver com os próprios olhos, alargar a pesquisa a testemunhos variados, dar contexto ao que se vai passado, ouvir comentários de vozes menos implicadas nas operações, etc., etc. Tentar ir encontrando a verdade que tantas vezes se esconde por trás dos simples factos. E isso tanto se deve fazer de um lado como de outro. Não é por se estar do lado ‘bom’ ou do lado ‘mau’ que se faz automaticamente bom jornalismo.

Voltando a Henri Cartier-Bresson e ao ponto de vista que ele escolheu para retratar a coroação de um novo rei, parece claro que se trata não propriamente de um esforço de cobertura noticiosa neutra e distanciada, mas de uma opção clara (e ideologicamente marcada) por uma outra forma de ver uma cerimónia pública e os seus protagonistas.  Desde logo, por considerar protagonistas daquela cena também (ou sobretudo) as pessoas que foram assistir… E por lhes dar estatuto, por as retratar mesmo como pessoas, não como massa ou multidão ou cenário… E por olhar, afinal, para onde não é costume olhar-se nestas circunstâncias – para o povo…

Depois de publicadas no jornal Ce Soir, as fotografias de Cartier-Bresson saíram também num mensário ligado ao Partido Comunista francês, chamado “Regards” (“Olhares”). E o título desse trabalho foi “Ceux qui regardaient…” (“Os que olhavam…”). No catálogo da exposição de Paris pode ler-se este pequeno comentário a propósito: “Há, neste jogo de pontos de vista, diversas inversões: a do fotógrafo que vira as costas ao rei para fotografar o povo, e a dos espectadores que viram as faces para melhor observar o soberano. Invertendo assim o olhar, Cartier-Bresson imagina a reversão do poder”.

Independentemente do propósito político que se percebe na escolha do repórter, há, ainda assim, méritos específicos na escolha de um ponto de vista diferente e original para mostrar uma realidade. Não optar pela perspetiva mais óbvia e mais previsível, não ir atrás daquilo que “toda a gente” escolheu, não ceder à rotina ou ao caminho fácil, é algo que tem valor próprio e que pode levar a resultados mais significativos em termos informativos. Trabalhos jornalísticos muito parecidos (para não dizer iguais…), mesmo em projetos editoriais que gostam de se afirmar diferentes, é o que mais vemos por aí. “Os jornais são todos iguais, as televisões mostram todas a mesma coisa, e sempre do mesmo ângulo…”. Falta tantas vezes alguma surpresa, alguma novidade, alguma criatividade, aquele toque que nos chama a atenção e nos põe a pensar de outro modo. Falta tentar cativar o público e mostrar-lhe aquilo que ele não esperaria – mas que acaba por ver que lhe mostra muito mais do que ele imaginara. Disso também se faz o bom jornalismo: da aposta num ponto de vista próprio, capaz de ir para além do óbvio ou da espuma do acontecimento, para tentar ver ‘lá para dentro’. Capaz de arriscar um outro olhar…

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.