Jornalista: entre o ‘profissional’ e o ‘pessoal’

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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Pode/deve um jornalista ‘despir o casaco’ de jornalista e escrever (nas redes sociais, por exemplo) tudo o que lhe apeteça, como qualquer cidadão exercendo o seu inalienável direito à liberdade de expressão? Ou é recomendável que tenha aí alguma prudência, de modo a não afetar a sua imagem pública de independência e isenção tão necessárias ao trabalho informativo?

Dois casos recentes, envolvendo alguma polémica sobre liberdade de expressão e meios de comunicação social, chamaram (de novo) a atenção para um tema que divide opiniões, designadamente entre os jornalistas: é possível separar o ‘pessoal’ do ‘profissional’ quando se escreve, por exemplo, em redes sociais?

O “caso Lineker” passou-se na estação pública BBC, quando um conhecido comentador desportivo foi afastado do seu programa por ter divulgado, no Twitter, uma opinião muito crítica sobre a política de emigração do governo britânico. O assunto gerou tal onda de protestos que os responsáveis da BBC tiveram de voltar atrás e readmitiram Lineker. E prometeram criar regras mais claras para lidar com estas situações.

O “caso Araújo” passou-se no jornal privado Expresso, quando um conhecido colunista daquele semanário cessou ali a sua colaboração, aparentemente de comum acordo com a direção do jornal, pelo facto de ambos terem “divergências quanto ao estatuto e aos deveres funcionais dos colaboradores externos”. António Araújo, autor de uma prestigiada coluna semanal de obituários, escrevera num blogue um artigo muito violento a criticar determinada reportagem saída no Expresso – e a criticar também a jornalista sua autora.

O problema, como daqui se depreende, é o seguinte: pode/deve um colaborador de um órgão de comunicação publicitar, nas redes sociais onde escreve a título pessoal, opiniões críticas do órgão de comunicação em que trabalha ou da entidade que o tutela? Ou, pelo contrário, deve observar um qualquer “dever de reserva” e conter-se naquilo que diz, para não ser acusado de eventual deslealdade, ou falta de respeito, ou dano à imagem e reputação do órgão de comunicação em que colabora? Dito de outro modo: pode um colaborador deste género despir o casaco de colaborador quando escreve no Twitter, no Facebook ou num blogue, ou, pelo contrário, tem de ter sempre vestido o casaco de colaborador do tal órgão, esteja numa atividade pública ou num domínio privado? Pode ou não o ‘profissional’ comportar-se de determinada maneira e o ‘pessoal’ comportar-se de uma maneira diferente, no que tem a ver com a expressão de opiniões?

Nos casos aqui referidos, tanto a BBC como o Expresso terão considerado que as opiniões pessoais de um colaborador seu, expendidas em páginas privadas (mas que, no universo online, sabemos serem sempre de algum modo públicas…), lhes causaram algum tipo de dano. E daí a vontade de prescindirem daquelas colaborações. Inversamente, os autores entenderam que o facto de escreverem num órgão de comunicação social não lhes retira o direito à livre expressão das suas opiniões, quaisquer que elas sejam e onde quer que isso aconteça, pois se trata de direitos básicos de cidadania.

O ‘ser’ e o ‘parecer’

Nem Gary Lineker nem António Araújo são jornalistas. São comentadores em “part-time” que escrevem textos de opinião. Mas estas controvérsias há muito que tocam também os jornalistas, e até de um modo bem mais sensível, quer porque desenvolvem o seu ofício a tempo inteiro como empregados de uma empresa, quer porque estão comprometidos com um conjunto de regras que devem observar no exercício das suas funções: distanciamento, independência, transparência, objetividade. O trabalho de base dos jornalistas é a informação, é a notícia – não a opinião. Claro que os jornalistas também podem escrever textos de opinião nos órgãos de comunicação para que trabalham. E fazem-no volta e meia, assinalando de modo claro que se trata de uma opinião (e não de uma notícia). Mas, para além deste âmbito profissional, os jornalistas também são cidadãos, pessoas com vida privada, e nessa qualidade não falta quem, por exemplo, crie contas nas redes sociais – no Facebook, no Twitter, no Instagram, no TikTok. Contas privadas, que são as que aqui nos interessam. Mas contas que, numa rede social, também são sempre um pouco públicas.

Imaginemos, então, que um(a) qualquer jornalista vai para as redes sociais dizer mal do seu patrão, do seu diretor, dos seus editores, criticar as opções por eles tomadas. Ou que vai para as redes sociais assumir posições políticas marcadas a favor deste partido e contra aquele, ou que vai zurzir num clube de futebol e idolatrar outro, ou que vai ridicularizar este empresário ou aquele autarca ou aquela ministra. Fá-lo no pressuposto de que tem direito à livre expressão enquanto cidadão de pleno direito e que a esfera onde está a fazê-lo é do domínio privado, pessoal, que alegadamente não se confunde com o ser profissional.

Imaginemos agora que esse(a) mesmo(a) jornalista, no dia seguinte, escreve / publica / difunde peças noticiosas sobre o tal partido, ou sobre o tal clube, ou sobre o tal empresário ou autarca ou ministra. Quem leia / ouça / veja tais peças, olha para o seu autor e, recordando os “posts” que leu na véspera numa qualquer rede social, pode duvidar de que tais peças sejam de algum modo influenciadas pelas suas opiniões pessoais. “Então um jornalista que disse o que disse daquele partido político vai agora cobrir a manifestação desse mesmo partido e nós achamos que é totalmente isento e independente?… Até pode ser, mas ficamos meio desconfiados…”. O trabalho do jornalista é precisamente esse, implica deixar de lado opiniões pessoais e fazer trabalho distanciado, rigoroso, isento. Para isso foi treinado e com isso se compromete. E na maior parte das vezes até o fará. Mas aos olhos do público pode ficar uma dúvida, um torcer de nariz, um desconforto… e a imagem de credibilidade e confiança que é tão essencial ao trabalho jornalístico acaba beliscada. Sem necessidade.

Queiramos ou não, as pessoas olham para o João da Silva, pivot da TVP, e não veem só “o” João da Silva, a pessoa, o cidadão privado; veem o João da Silva que é (também) jornalista da TVP… E se o encontram a discursar num comício partidário, não dizem que está ali a falar o João da Silva; dizem que está ali a falar “aquele que é jornalista da TVP”. E se alguém lê no Twitter um post da jornalista Maria da Silva a ridicularizar um ministro que ontem entrevistou para o jornal PáginaX, não vai pensar que quem escreveu no Twitter foi a pessoa Maria da Silva, mas sim que foi “aquela que é jornalista do PáginaX”. É incontornável. E então se o João da Silva e a Maria da Silva andarem no Facebook ou no Instagram a criticar virulentamente a TVP e o PáginaX, exercendo o seu inalienável direito à liberdade de expressão enquanto cidadãos, não conseguem escapar ao facto de que o público os olha como “jornalistas de…” e não apenas como pessoas singulares. Para o bem e para o mal.

O ‘bem maior’ e o ‘mal menor’

O assunto, como disse, divide opiniões entre os jornalistas. Há muito quem entenda que esse assunto é estritamente do foro privado e que cada jornalista fará o que entender melhor, sem ter de prestar quaisquer contas por isso. Se entender que deve conter-se naquilo que diz ou faz fora do trabalho, fá-lo-á; se entender que não deve conter-se, não o fará.

Há, no entanto, órgãos de comunicação que, em anos recentes, decidiram fazer alguma reflexão sobre o assunto e adotar regras de conduta neste domínio, fazendo-o sob a forma de recomendações (e não de imposições, que legalmente seriam inaceitáveis). Dois exemplos que podem consultar-se são o do semanário português Expresso e o do diário americano The New York Times. Num caso e noutro, surgiram na sequência de longos processos de discussão interna, envolvendo os jornalistas e as suas estruturas representativas e não houve unanimidade em todos as alíneas, tendo acabado por se consensualizar o que pareceu mais aceitável. Mas os debates prosseguem – e no próximo Congresso dos Jornalistas Portugueses, em janeiro de 2024, estarão decerto em cima da mesa das temáticas ligadas à Ética.

Quem é contra qualquer tipo de imposição ou recomendação nesta matéria entende que um jornalista não pode ver retirados ou diminuídos quaisquer dos seus direitos enquanto cidadão, incluindo o direito à livre expressão. Consideram que não deve confundir-se a esfera do ‘pessoal’ com a do ‘profissional’ e que o público sabe bem fazer essa destrinça. Ou seja, se lê uma opinião de um(a) jornalista no Facebook, no Twitter ou num blogue, percebe que isso se passa no domínio da sua vida privada e não retira daí quaisquer ilações para julgar criticamente a atividade profissional, presente ou futura, desse/dessa jornalista.

Quem, pelo contrário, é favorável a alguma auto-contenção dos jornalistas na divulgação de opiniões em redes sociais parte do pressuposto de que, aos olhos do público, um jornalista não é nunca totalmente separável da sua pessoa. Sendo um profissional com algum grau de exposição pública, o jornalista é frequentemente visto como jornalista, mesmo quando não está a sê-lo, ou seja, quando está a desenvolver alguma atividade privada, pessoal. Nesse sentido, para não correr o risco de prejudicar a imagem do órgão que lhe dá emprego, ou para não lançar dúvidas sobre a independência e a isenção relativamente àquilo em que está a trabalhar, o jornalista aceita auto-limitar a sua livre expressão. Estando em confronto dois bens igualmente respeitáveis e desejáveis – o bem que é a liberdade de expressão e o bem que é a imagem de credibilidade aos olhos do público –, o jornalista decide qual é, no caso, o “bem maior”. Opta por manter alguma reserva naquilo que pudesse perturbar a relação de confiança com o público, mas fá-lo livremente, seguindo eventualmente as recomendações que a empresa lhe faz, mas, acima disso, respeitando a sua consciência.

Todos os dilemas éticos colocam em confronto dois bens, ambos cheios de valor e merecedores de respeito, mas que eventualmente não podem ser respeitados ao mesmo tempo. Sendo esse o caso, temos de optar por aquele que, em nosso entender e face aos princípios por que nos regemos, bem como face às circunstâncias específicas do momento, consideramos o “bem maior”. Escolher um bem é desrespeitar o outro bem, ou seja, é fazer mal – e por isso se diz também que a opção foi pelo “mal menor”. Entre “bem maior” e “mal menor”, o certo é que é sempre uma decisão com riscos, frequentemente difícil, mas que em muitos momentos da atividade jornalística tem de ser assumida. E dela, no limite, prestamos contas à nossa consciência, à nossa exigência ética. Também por isto o jornalismo é uma profissão de risco…

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.