Convidar jornalistas para uma “conferência de Imprensa” e recusar-lhes o direito de fazer perguntas é uma bizarria (e uma afronta…) que, infelizmente, se vai tornando comum entre nós. Mas isso só acontece porque o ‘crime’ compensa. E o boicote prometido vai tardando.
Não é comum um jornal ser publicado com uma página em branco. Nada comum mesmo! Mas aconteceu pelo menos uma vez cá no nosso país, está agora a fazer seis anos. Quem decidiu fazê-lo foi o semanário regional Jornal de Barcelos. E porquê? Porque uma sua jornalista foi convocada para uma conferência de Imprensa, participou nela, ouviu o que os seus promotores tinham a dizer e, no momento de fazer perguntas sobre o que ouvira, foi-lhe comunicado que não havia lugar a perguntas. Mais nada. Ponto final. E o jornal decidiu que, se não tinham permitido que a sua jornalista fizesse o trabalho que lhe competia, não daria qualquer notícia do evento. Publicou uma página em branco, com uma pequena nota explicativa assinada pela direção.
Duas semanas antes deste episódio, os jornalistas portugueses, reunidos no seu 4º Congresso, tinham aprovado uma proposta de “boicote a conferências de imprensa onde os jornalistas não tenham direito a fazer perguntas”. A decisão do Jornal de Barcelos estava, portanto, em clara sintonia com este propósito. O certo é que isto da página em branco sucedeu no dia 1 de fevereiro de 2017 e, tanto quanto sei, não voltou a acontecer. Mas conferências de imprensa sem direito a perguntas, oh!, quantas se fizeram desde então!… E quantas foram boicotadas?… E de quantas se resolveu não dar sequer notícia?… Aparentemente, a decisão de boicote tomada pelo grupo profissional dos jornalistas não teve qualquer seguimento. Foi esquecida? É desvalorizada? Não se mostra viável?…
O artigo 37º da Constituição…
Dar uma conferência de Imprensa sem direito a perguntas por parte dos jornalistas é, bem vistas as coisas, uma contradição nos termos. Não passa de uma espécie de “declaração à Imprensa”, algo que alguém diz ou lê, esperando que a Imprensa (entendida em sentido lato, ou seja, abrangendo jornais, rádios, televisões, online) reproduza, no todo ou em parte, aquilo que foi dito. Para isto, é claro que não são precisos jornalistas; basta um microfone, basta um gravador, basta uma máquina. Mas então, por que raio são convocadas “conferências de Imprensa”, quando o que se quer fazer é apenas isto? Pois é: são convocadas para tentar garantir que o que é dito acaba por ser publicado. E, sobretudo, para tentar que lá haja uma câmara de televisão… O que se pretende não é informar, no sentido jornalístico do termo. O que se pretende é transmitir, promover, propagandear. E para isso, claro, não são precisos jornalistas – bem pelo contrário! Fazendo perguntas, os jornalistas só atrapalham…
Uma conferência de Imprensa devia ser destinada a promover informação sobre um determinado assunto, com gente a falar, gente a ouvir e gente a dialogar. Com os jornalistas todos colocados em pé de igualdade, todos com direito de acesso e direito à palavra, aborda-se certa matéria e quem a apresentou é, depois, confrontado com perguntas. Umas destinam-se a esclarecer melhor o que foi dito, outras a procurar obter elementos suplementares de informação, outras porventura a dar nota de situações dúbias ou contraditórias. Tudo isso pode e deve ser esclarecido no “período de perguntas e respostas”, com grande vantagem para nós, os destinatários finais da informação. E ficamos muito gratos se os jornalistas se tiverem preparado previamente para debater o tema em análise e, assim, colocarem as perguntas mais interessantes e mais pertinentes do ponto de vista informativo. É para isso que há jornalistas, é por isso que eles vão a uma conferência de Imprensa. Não é para lá chegarem, ligarem o gravador ou abrirem o bloco de notas, tomarem uns apontamentos e voltarem a casa para reproduzir o que de lá trouxeram. São os famigerados jornalistas “pé de microfone”, que muita e muito boa gente gostaria que eles fossem… e nada mais que isso.
Foi para combater esta indesejável prática que o Congresso dos Jornalistas apelou ao boicote. Porque, além de feia e mal-educada, é uma prática que dificulta e impede o nosso direito à informação nos termos em que o define o artigo 37º da Constituição da República Portuguesa: “…o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”. Não se retira a ninguém o direito a fazer as “declarações à Imprensa” que muito bem entender. O que se condena, sim, é o uso perverso de uma instituição respeitável como é uma conferência de Imprensa, tipicamente destinada a garantir aos jornalistas um melhor acesso a informação, para silenciar os jornalistas, impedindo-os de fazer perguntas. Como comentava a então presidente do Sindicato dos Jornalistas, Sofia Branco, ao aplaudir o boicote decidido pelo Jornal de Barcelos, “o papel do jornalista não é ir assistir a coisas, é fazer perguntas”.
… e o artigo 3º do Código Deontológico
Chama-se precisamente “Artigo 37” uma plataforma online criada há já mais de um ano e destinada a “denunciar as restrições à liberdade de informação em Portugal”, quaisquer que elas sejam.
Da iniciativa de um conjunto de jornalistas e académicos ligados ao mundo da Comunicação, a plataforma divulga regularmente situações de atropelo a essa liberdade, sejam as de “conferências de Imprensa sem perguntas”, as de “acesso negado a documentos”, as de “violência física sobre jornalistas”, as de “proibição de acesso a lugar” ou as de “ameaça de processo judicial”, para citar apenas algumas das categorias. E de todas as situações ali apresentadas, sempre recolhidas a partir de notícias já saídas a público, quem é denunciado tem, naturalmente, direito de resposta.
Esta iniciativa procura dar visibilidade e substância também ao artigo 3º do Código Deontológico dos Jornalistas, que reza assim: “O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos.” Ou seja, denunciar todos os atropelos ao direito à informação e combatê-los na medida das suas possibilidades é um dever dos jornalistas. Um dever deontológico, cujo propósito tem em vista, naturalmente, servir melhor as pessoas para quem o jornalismo se faz.
Ter acesso a um lugar onde decorre certo ato público, ter direito a consultar certo documento oficial, ter direito a abordar os responsáveis de um qualquer ato público, ter direito a fazer perguntas numa conferência de Imprensa, e fazer tudo isto sem ser vaiado, molestado, ameaçado ou agredido, não é uma qualquer benesse oferecida a gente privilegiada, como às vezes dizem que são os jornalistas. Não. É apenas garantir que lhes são asseguradas as condições essenciais ao exercício da sua função – que é uma função de verdadeiro serviço público. Ou seja, informar-nos o melhor possível sobre tudo o que se entenda ser relevante para as nossas vidas. Para que nós, cidadãos, possamos tomar decisões mais fundamentadas, mais conscientes, mais críticas. Denunciar quaisquer atropelos a este direito à informação é um dever de todo o jornalista – e é, parece-me, um dever também de todos os órgãos de comunicação. São eles os segundos prejudicados com estes abusos (os primeiros somos nós). E só um esforço coletivo neste domínio permitirá mudar o estado de coisas.
Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.