Isto anda tudo misturado…

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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O jornalismo passou décadas a tentar autonomizar-se e afirmar a sua especificidade. Hoje não falta quem queira misturar-se com o jornalismo, beneficiando da sua imagem de marca e da sua, apesar de tudo, credibilidade. A hibridização é o futuro?

Pediram-me, no final de 2022, uma pequena reflexão sobre as previsíveis tendências de evolução dos média em 2023. E eu apontei o que me parece ser um caminho crescentemente marcado pela hibridização, pela miscigenação, pela fusão, seja no que toca a lógicas de criação, seja no que respeita a produtos, a formatos ou a linguagens.

Troquemos isto por miúdos.

Durante décadas, o jornalismo foi procurando afirmar-se como uma atividade própria, autónoma, com os seus princípios e valores específicos, com determinados padrões profissionais, com uma lógica de serviço público desinteressado (mesmo que praticado em contextos empresariais e de mercado). Nos inícios, precisou de se diferenciar dos meandros da propaganda política, que era aquilo para que serviam os jornais, domínio exclusivo da opinião, do comentário, da polémica partidária e da doutrinação. Precisou também de deixar para lugar próprio a ficção e a criação literária que ocupavam tanta página de jornal e de algum modo sugeriam que o jornalista era (queria ser) sobretudo um escritor, um artista, em vez de um artífice da informação sobre a atualidade. Chegada a época da imprensa industrial e do mercado das notícias em meios de comunicação de massas – ou seja, o tempo dos jornais mais parecidos com os que temos hoje em dia –, precisou também de não se deixar confundir, nem de perto nem de longe, com os interesses comerciais que o seduziam e lhe montavam cerco. A “regra de ouro” da separação entre a área editorial e a área comercial, não permitindo que as mensagens publicitárias se confundissem com os conteúdos informativos, mostrou-se essencial para credibilizar o jornalismo e o legitimar enquanto atividade de grande valor (e responsabilidade) social, voltado para o serviço dos cidadãos como um todo e não para o interesse de apenas alguns.

Um lugar para o jornalismo, um lugar para a publicidade, um lugar para as relações públicas e o “marketing”, um lugar para a ficção, um lugar para a propaganda, um lugar para o entretenimento: é esta arrumação, razoavelmente estabilizada e transparente, de disciplinas ligadas à comunicação no espaço público que nos últimos anos se tem diluído e promete continuar a diluir-se ainda mais.  As tecnologias digitais e a sua imparável disseminação facilitam estes propósitos de mistura e cruzamento, tanto de domínios como de linguagens, mas não é só de técnicas que se trata; é também de mudança de padrões de comportamento, de propósitos de inovação e de necessidades (ou vontades) de negócio.

Cada vez mais produtos híbridos

Amalgamar em vez de diferenciar, misturar em vez de autonomizar, confundir em vez de distinguir: eis uma linha de força que marca crescentemente a atividade dos média na era digital. Tornou-se muito mais fácil juntar o que antes costumava andar separado (por exemplo, palavra escrita, som, imagem, vídeo, infografia) e isso não se ficou apenas pelo plano das técnicas ou dos suportes; pelo contrário, contagiou também as mensagens, os produtos e serviços canalizados pelos média.

Sinal curioso desta crescente mistura do que antes costumava andar separado são as próprias palavras híbridas que se vão criando para dizer as novas realidades. “Infotainment”, por exemplo. Ou “advertorials” (as “publireportagens” à portuguesa). Ou “factions”, mistura de “facts” e “fictions”. E tudo num contexto em que somos todos cada vez mais “produsers” ou “prosumers” e “netizens”. Tudo mais misturado do que arrumado em quadrículas individuais. Tudo uma coisa, mas também outra.

Veja-se, por exemplo, no que se foi tornando o serviço de notícias do “prime time” das televisões comerciais portuguesas (o “Jornal da Noite” ou o “Jornal das 8”). Prolongando-se atualmente por cerca de duas horas, são uma espantosa miscelânea de notícias para informar e notícias para entreter (“soft news”), com autopromoções pelo meio, reportagens de atualidade seguidas de “fait-divers” a rodos, muitas peças da área a que agora se chama de “lifestyle” (um passeio turístico, um restaurante, um hotel, um novo “gadget”…), e tudo isto embrulhado num alinhamento muito peculiar, cujo propósito é prender e surpreender a cada minuto  os mais diversos espetadores, dando-lhes uma espécie de magazine onde cabe quase tudo. Um exemplo acabado de produto híbrido, que é também sinal deste tempo.

As tendências de miscigenação na generalidade dos média também têm, naturalmente, os seus aspetos positivos. A redação de um jornal, de uma rádio ou de uma televisão, que costumava ser exclusivamente povoada por jornalistas, vai sendo agora – e será cada vez mais no futuro – um espaço de coexistência e colaboração de múltiplas disciplinas e de variados profissionais. Ao lado de quem produz informação em texto ou imagem sentam-se, agora, especialistas de informática e de tratamento de dados, programadores, designers gráficos, infografistas e animadores digitais, peritos das tecnologias multimédia, etc. “Jornalismo de dados”, “jornalismo imersivo”, “realidade aumentada”, “inteligência artificial”, são domínios inovadores que marcam cada vez mais a atividade dos meios de comunicação, requerendo crescentemente a convergência e o trabalho em cooperação de múltiplas áreas de especialidade que acrescentam ao jornalismo tradicional e lhe dão novos rostos e novos rumos. O jornalismo, tal como hoje se pratica e se requer, já não é um assunto exclusivo dos jornalistas.

A crise do “modelo de negócio”

Há, no entanto, outros exemplos de mistura e hibridização que se multiplicam igualmente a grande velocidade, mas que arriscam prejudicar o jornalismo mais do que valorizá-lo. A crescente porosidade das fronteiras que deviam separar a área comercial (o espaço da publicidade) da área editorial (o espaço das notícias) tem dado lugar a uma multiplicidade de produtos e serviços que dificilmente nos permitem saber se estamos perante informação de interesse público ou anúncio de interesse privado. Os chamados conteúdos patrocinados (e práticas de lógica semelhante, como as de “content marketing”, de “brand journalism”, de “native advertising”) jogam precisamente nessa ambiguidade, ao utilizarem géneros e formatos característicos do jornalismo para promoverem a venda de determinados produtos, de modo que quem lê ou vê fica com a impressão de que está perante uma notícia ou uma reportagem genuína, quando em boa verdade está a receber uma mensagem publicitária que foi paga para ser publicada. Difundir um anúncio que não parece um anúncio é o propósito. Aproveitar o prestígio e a boa reputação do jornalismo para ‘embrulhar’ mensagens comerciais e disfarça-las é o móbil. Mesmo que haja (como a lei determina) algum tipo de sinalética e de mancha gráfica que informe os públicos de que o que estão a ler/ ver é do domínio do comercial, e não do editorial, a verdade é que esta exigência acaba por ser frequentemente incumprida – sendo certo que não falta quem não consiga, mesmo assim, distinguir o que é jornalismo do que é publicidade. Afinal, é isso mesmo que pretende quem trilha estes caminhos de hibridização das mensagens. No que toca ao jornalismo, porém, crescem os receios de que esta miscigenação pouco transparente mine a sua credibilidade já algo periclitante e prejudique a relação de confiança que ele precisa seriamente de estabelecer com o público.

Esta tendência foi muito potenciada pelas dramáticas quebras de receita publicitária que todos os meios de comunicação sofreram nos últimos anos. Com a publicidade tradicional a transferir-se em peso para as grandes plataformas tecnológicas, os média viram tremer o seu modelo de negócio tradicional e foram obrigados a encontrar vias alternativas de viabilização económico-financeira. Os “conteúdos patrocinados”, cada vez mais populares entre as empresas que gostam de anunciar em jornais, rádios, televisões e “sites”, têm sido uma das hipóteses preferidas. E é de presumir que continuem a ser, uma vez que a questão da viabilidade das empresas jornalísticas, sobretudo num pequeno país como Portugal, e num tempo marcado pela digitalização e pela Internet, é um tema sério que não vai sair da ordem do dia.

Uma coisa é igualmente certa: vai intensificar-se o debate sobre se estas tendências de aproximação entre conteúdos editoriais e conteúdos promocionais são algo de pernicioso que deve ser combatido ou se, pelo contrário, são algo de incontornável que deve ser integrado nos novos modos de fazer (e de entender, e de viabilizar) o jornalismo. A multiplicidade de novos atores neste campo, a diversidade infinda de potencialidades técnicas, a pressão para o explorar de soluções mais eficazes num mundo saturado de comunicação, a progressiva interpenetração de disciplinas neste domínio, tudo isso contribui para tornar difícil a manutenção de (ou o regresso a) um modelo de informação jornalística muito balizado por ‘quadrículas’ isoladas e independentes. Mesmo no que toca aos profissionais do jornalismo e às suas crescentes dificuldades de emprego, são cada vez mais as vozes a sugerir que eles possam utilizar o seu saber e o seu saber-fazer para trabalharem noutros domínios da comunicação, sem que com isso ponham necessariamente em causa os valores por que se rege um jornalista. É mais um tema candente, polémico, que nos próximos anos vai decerto alimentar debates no seio de profissionais, de académicos, de reguladores e… dos cidadãos.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.