Todo o jornalista é, em maior ou menor grau, um “fact-checker”. A “disciplina de verificação” é uma das exigências básicas do seu trabalho. Mas tratar no mesmo plano uma notícia que merece confirmação ou uma alarvidade que alguém pôs a circular nas redes sociais talvez não seja grande ideia.
O “fact-cheking” é, pode dizer-se, uma das atividades mais basilares e mais nobres do jornalismo. De todo o jornalismo e de todos os dias. Claro que podemos chamar-lhe outros nomes, mas do que estamos a falar, afinal, é daquilo que Bill Kovach e Tom Rosenstiel escreveram há cerca de 20 anos, no seu famoso livro “Os Elementos do Jornalismo”: “A essência do jornalismo assenta numa disciplina de verificação. No fim de contas, a disciplina de verificação é o que separa o jornalismo do entretenimento, propaganda, ficção ou arte” (p. 74). E explicavam: “O entretenimento – e o seu congénere ‘infotenimento’ – concentra-se naquilo que distrai mais. A propaganda seleciona ou inventa factos para servir um objetivo superior – a persuasão e a manipulação. A ficção inventa cenários para chegar a uma versão mais pessoal daquilo a que chama verdade. Apenas o jornalismo se concentra, em primeiro lugar, em apurar aquilo que realmente aconteceu” (ibid.).
Em rigor, quase poderíamos dizer que não é preciso criar, nas redações ou ao lado delas, qualquer departamento específico de “fact-checking”, uma vez que o esforço de verificar a veracidade e o rigor do que é noticiado deve estar presente na atividade normal de todo o jornalista. Um jornalista cuidadoso e atento é o seu primeiro e mais relevante “fact-checker”. Claro que pode haver necessidades específicas de recorrer a pessoas especialmente disponíveis para tal trabalho de confirmação de dados, por razões de operacionalidade e de eficácia – desde logo, para suprir a dramática falta de tempo com que, nas redações atuais, todas as profissionais se debatem. E este, sim, é também um problema sério que afeta grandemente a qualidade do produto final que se serve aos públicos. Mas, a não ser por tais razões, cabe primeiramente a cada um e a cada uma verificar aquilo que se quer publicar ou difundir — porventura com a ajuda de quem se senta a seu lado na redação, que isto do jornalismo também é sempre muito trabalho de equipa
Esta preocupação com o “fact-checking” tem, além do mais, a vantagem de nos mostrar qual o verdadeiro papel de um jornalismo que não se fica por uma espécie de “pé de microfone”, apenas ouvindo ou registando o que alguma fonte quer dizer e reproduzindo o que é dito sem mais elaboração ou acrescento de valor. Disso, aliás, falavam igualmente Kovach e Rosenstiel no seu livro: “Uma disciplina de verificação mais conscienciosa é o melhor remédio para que o velho jornalismo de verificação não seja ultrapassado pelo novo jornalismo declarativo, além de fornecer aos cidadãos fundamentos para confiarem nos relatos jornalísticos” (p. 81). Bem sabemos do que falam…
Verificar ou ignorar?
Sucede, entretanto, que em anos recentes assistimos ao proliferar de organizações ou grupos dedicados exclusivamente ao trabalho de “fact-checking”. A sua importância cresceu na exata medida em que se multiplicaram no espaço mediático – que, convém não esquecer, hoje inclui as redes sociais, os também chamados “social media” – as situações de desinformação, de manipulação, de “fake news”. Algumas destas organizações estão colocadas no interior de órgãos de informação, o que parece razoavelmente lógico, mas outras estão fora deles, dedicando-se a escolher, em tudo o que aparece nos média tradicionais e nos média sociais, quais os episódios ou situações merecedoras de um “fact-checking”. O propósito é ajudar-nos a perceber melhor se aquilo é verdade ou mentira, pois muitas vezes um cidadão normal, sem especiais conhecimentos, tem óbvias dificuldades em separar o trigo do joio nas muitas mensagens com que contacta.
Neste contexto, temos assistido com crescente frequência a uma prática que me parece discutível: escolher, para o trabalho de verificação, publicações anónimas postas a circular nas redes sociais que são evidentes mentiras ou alarvidades, e que são difundidas (e re-difundidas… e re-difundidas…) com óbvias intenções políticas, destinadas a prejudicar personalidades conhecidas. Colocar no mesmo plano – tendo em vista o trabalho de verificação da sua veracidade ou falsidade – uma afirmação de um ministro sobre uma promessa feita e não cumprida ou uma publicação anónima do Facebook acusando Catarina Martins de usar um relógio que lhe custou 20,9 milhões de euros é, no mínimo, chocante. Quem o faz está, afinal, a dar dignidade e estatuto de notícia a uma insinuação tão ridícula como difamatória, que apenas apareceu por aí, anonimamente, porque alguém quis divertir-se à nossa custa ou ofender o bom nome de alguém. E porque, no seguimento, muitas outras pessoas pegaram na tal “informação” e multiplicaram-na pelo mundo das redes, amplificando-a até ao nojo. Quem depois a seleciona para fazer o tal “fact-checking” está a amplificá-la ainda mais e, por assim dizer, a branqueá-la, pois lhe confere estatuto de informação que merece verificação…
Acredito que muitas das pessoas dedicadas a este tráfico de desinformação nas redes sociais ficam todas contentes quando veem que uma qualquer organização séria e idónea, dedicada generosamente ao trabalho de “fact-checking”, escolhe uma das suas publicações (e quanto mais alarve, melhor…) para avaliar se aquilo é verdade ou mentira. Para discutir se a líder do BE deu ou não 20 milhões de euros por um relógio… Ou se Greta Thurnberg convidou os chineses a pararem de usar os pauzinhos com que comem para assim salvarem centenas de árvores… Ou se José Saramago disse que “Portugal não tem partidos de esquerda nem de direita, de nada, tem um bando de salafrários que se reúnem pra roubar juntos”… Ou se António Costa fez um almoço com quatro pessoas pelo qual pagou 9.400 euros… Quem inventou estes despautérios deve ter-se rido a bom rir quando viu que eles estavam a ser dissecados por “fact-checkers” com o mesmo empenho com que estes analisam uma revelação do presidente da República, uma estatística do ministro das Finanças ou uma denúncia do líder da oposição. Parece tudo igual. Coloca-se tudo no mesmo plano, apenas porque “circula por aí”… E com isso se confere estatuto e importância a javardices, ofensas ou calúnias que encontram nas redes sociais o terreno ideal onde podem ser difundidas e amplificadas com toda a impunidade…
Inverter o ónus da prova?
Acresce uma última consequência perversa desta situação: quando se dá dignidade noticiosa a uma qualquer idiotice inventada por alguém e posta a correr nas redes, depressa se fica à espera que a pessoa acusada venha desmentir… E até haverá um ou outro jornalista que logo vai perguntar à pessoa se aquilo é verdade, se tem algum comentário a fazer… E se a pessoa pura e simplesmente ignora a alarvidade, ai, ai, ai, deve haver ali qualquer coisa a esconder, não há fumo sem fogo, porque é que não esclarece?… E assim por diante…
Foi a isto que há dias se referiu a jornalista Fernanda Câncio, numa publicação no Twitter, precisamente a propósito do tal almoço em que António Costa teria gasto 9.400 euros. Disse ela que este caso “demonstra a facilidade com que se criam e propagam calúnias e a dificuldade de as desmentir”, pois “haverá sempre quem acredite e queira acreditar na versão caluniosa, por mais desmentidos que se façam.” Mas ela critica sobretudo a perspetiva com que estes casos costumam ser encarados: o ónus da prova não é colocado em quem acusa, mas em quem é acusado… O método típico da Inquisição, afinal. Está tudo ao contrário, quando quem foi objeto de calúnia ou de ofensa é que sofre a pressão para vir provar a sua inocência. Sublinha Fernanda Câncio: “A lógica é sempre esta: se estás inocente, prova, mostra tudo, esvazia as gavetas, coloca-te na posição de réu, humilha-te, responde a todas as perguntas, por mais insultuosas e inadmissíveis, e logo vemos”.
Pegar em publicações deste jaez e dar-lhes honras de acesso à nobre atividade de “fact-checking” – em vez de simplesmente as ignorar e desprezar, que é o que merecem – é contribuir, no fundo, para que tal lógica se mantenha. Com isso saem beneficiados os infratores (todos aqueles que fazem um uso indevido, malicioso ou ofensivo das espantosas potencialidades das redes sociais) e sai diminuída a imagem de prestígio e seriedade que deve ter qualquer pessoa ou organização dedicada a verificar a veracidade e o rigor da informação no espaço público.
Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.