Quem determina a agenda do debate público? Quem define quais os assuntos mais relevantes para nos informarmos? Quem escolhe, em cada dia e cada hora, o que merece ser noticiado e o que fica condenado ao esquecimento? Os média, pois claro. Mas… mas… mas…
Se há poder que os meios de comunicação social sempre tiveram, e em boa medida continuam a ter, é o poder de nos pôr a falar e a pensar sobre determinados assuntos. E isso implica, naturalmente, que se desvalorizem ou ignorem outros assuntos. Na célebre formulação de Bernard C. Cohen, apresentada nos idos de 1963, os média até podem não nos dizer “o que pensar”, mas dizem-nos certamente “acerca do que pensar”. Ou seja, definem a agenda do debate público.
A formulação original de Cohen é esta: “The press may not be successful much of the time in telling people what to think, but it is stunningly successful in telling its readers what to think about”. A citação foi reproduzida e desenvolvida por dois reputados investigadores, Maxwell McCombs e Donald Shaw, a quem se deve a sistematização, já em 1972, da que passou a ser conhecida como “Teoria de Agenda-Setting”.
Este é um poder tremendo, como se percebe. No meio da avalanche enorme de temas para os quais se pode chamar a atenção do público, cada jornal (e cada rádio, e cada televisão, e cada “site” noticioso) escolhe uns quantos. Poucos. Em função de que critérios? Uns, mais genéricos, a que costuma chamar-se “critérios de noticiabilidade” – e que têm a ver com fatores como proximidade, atualidade, novidade, raridade, relevância, conflito, personalização, etc. –, outros, mais específicos, ligados à identidade editorial de cada meio (o crivo de seleção de potenciais notícias é diferente conforme se trate do “Correio da Manhã” ou do “PÚBLICO”, para citar apenas um exemplo).
Mas tudo isto é apenas uma parte da história. Em termos práticos, aquilo que os diversos meios de comunicação social decidem pôr na agenda é influenciado em boa medida por fatores menos nobres e menos defensáveis em termos racionais. Num ambiente de grande competição entre os média, com uma luta sem quartel para captar a atenção de leitores, ouvintes e espectadores, a procura de assuntos mais “quentes” ou de maior impacto, embrulhados frequentemente num “soundbite” que dá um título apelativo, é uma tentação a que poucos resistem. Isso conduz a uma espécie de mimetismo que faz com que os órgãos de comunicação sejam mais parecidos do que se esperaria. Na prática, eles acabam por coincidir bastante na escolha dos principais assuntos, ainda que o seu tratamento ulterior nem sempre seja semelhante. O efeito de apagamento ou silenciamento de muita matéria aparentemente relevante para as nossas vidas é notório neste contexto. Mas é assim que funciona “o sistema”.
Há anos, o então diretor da SIC, Emídio Rangel, quando perguntado sobre por que razão passava horas e horas a transmitir em direto cenas de uma tragédia, mesmo quando não havia já nada a noticiar (a não ser perguntar às pessoas atingidas um parvo “como se sente?”…), justificou-se mais ou menos nestes termos: por ele, até deixava de dar esses diretos, mas não podia fazê-lo porque a concorrência também estava a dá-los. Ou paravam todos, ou não parava nenhum… Afinal, a tão propalada diversidade dos média não é assim tão diversa. Pelo contrário, fica-nos muitas vezes a sensação de que eles são quase todos demasiado iguais, regendo-se pela mesma cartilha e não arriscando fazer diferente, com receio de perderem o comboio da atenção pública maioritária. Como se esse comboio, levando-nos a todos monotonamente em cima dos mesmos carris, fosse a única coisa que interessa…
Percebe-se, portanto, que o grau de autonomia de um meio de comunicação para tomar as suas decisões em termos do que noticiar e do que ignorar é, por assim dizer, voluntariamente mitigado. Os responsáveis editoriais de cada meio e os jornalistas que lá trabalham podiam, teoricamente, selecionar, a cada momento, os temas que considerassem mais relevantes em termos de informação e de discussão no espaço público. Mas acabam muitas vezes por não o fazer de modo continuado, porque cedem aos ditames da concorrência (“então eles dão aquilo e nós não demos?…”), às pressões da suposta maioria do público (“anda toda a gente a falar daquilo, temos de falar também…”) ou à tentação de agradar no imediato (“aquilo não é grande coisa, mas sempre dá mais uns cliques…”). E é assim que matérias importantes para a nossa vida comum acabam volta e meia por merecer apenas um rápido rodapé no turbilhão diário das notícias, enquanto assuntos menores ou “fait-divers” de duvidoso interesse se prolongam por dias e dias em folhetins noticiosos, sem que ninguém perceba muito bem porquê. É o tal “sistema”, que se vai eternizando e autoalimentando, mesmo que toda a gente o critique…
Esta lógica algo perversa acaba por ter desenvolvimentos interessantes com a entrada em cena (e o imparável protagonismo) das redes sociais. Hoje em dia, não há redação que não esteja atenta às redes sociais, quer para saber do que por lá anda, quer para usar em proveito próprio esses novos canais (também) de distribuição de informação e opinião. E é certo e sabido que assunto com larga expressão nas redes sociais acaba por entrar rapidamente na agenda dos média tradicionais (jornais, rádios, televisões, “websites”). O que nos permite fazer um raciocínio curioso. Vejamos:
– O tráfego nas redes sociais é em grande medida potenciado por perfis falsos, que multiplicam as mensagens aos milhares, assim dando uma imagem enganadora daquilo que é mais popular e com maior número de “likes”, partilhas e “retweets”;
– O maior ou menor destaque dado a determinadas matérias nas redes sociais tem crescentemente a ver com o uso de algoritmos adotados por plataformas tecnológicas que gerem essas redes, e com critérios que nos são de todo desconhecidos;
– Os meios de comunicação constroem, hoje em dia, uma parte da sua agenda informativa a partir das tendências que vão descobrindo e acompanhando nas diversas redes sociais;
– Logo, é bem possível que parte da agenda pública mediática seja, de facto, ditada (ou de algum modo condicionada) por perfis falsos, “trolls” e algoritmos – e não pelo público-público, como poderia parecer.
É claro que estes assuntos são mais complexos do que pode fazer ver esta abordagem rápida e despretensiosa. O tema do agendamento mediático é difícil, controverso e cheio de matizes – matizes esses que a era digital veio multiplicar quase até ao infinito. Diretores, editores e jornalistas têm imensas dificuldades (e dúvidas, e receios, e perplexidades…) quando se trata de decidir o que noticiar e o que deixar de fora – e como o fazer. Nunca é simples, nunca é imediato. Há sempre um monte de fatores a levar em conta, dos mais nobres (a importância, o alcance, o impacto…) aos mais corriqueiros (falta de tempo, falta de espaço, vontade de aligeirar…). Ainda assim, mesmo com necessidade de atenção à concorrência e aos desejos inconfessados dos leitores, mesmo com a preocupação de não “perder o comboio” de certo tema e de não falar daquilo de que toda a gente (toda a gente?…) fala, mesmo com tudo isso, será desejável guardar algum lugar para o exercício da autonomia editorial que cada meio deve afirmar.
A autonomia não existe em estado puro e qualquer jornal ou rádio ou televisão tem de gerir uma quantidade razoável de dependências. Mas entre gerir essas dependências e abdicar de ter uma voz própria nas escolhas a fazer, tendo até em vista a desejável “diferenciação do produto”, vai uma distância. Também por aqui passa a inalienável responsabilidade dos jornalistas, se eles se preocupam, como juram preocupar-se, com o interesse público e com as reais necessidades informativas das pessoas concretas em nome de quem trabalham.
Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.