O jornalismo ensina-se?

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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“Assim como não há escolas de poesia, também as não pode haver de formação de jornalistas”

(Bento Carqueja (1860-1935), antigo diretor do jornal O Comércio do Porto)

No momento em que se inicia um novo ano letivo, algumas dezenas de jovens começam, em Portugal, a frequentar cursos superiores de Jornalismo. É algo que encaramos como completamente normal desde há mais de 40 anos, mas é também algo que demorou muitas décadas – e muitas polémicas – até se tornar algo normal…

No princípio, os jornais eram coisa de escritores. Quando muito, “literatura com pressa”, para evocar uma expressão antiga. Serviam para publicar obras literárias e, cada vez mais, também escritos políticos. Quem neles escrevia não tinha (nem sentia necessidade de) qualquer formação específica: quem tivesse jeito para as letras devotava-se àquela arte. Sim, era de artistas que se tratava. E que ali exercitavam o seu hobby (não uma profissão, e muito menos a tempo inteiro). Ora se não havia escolas de poesia, para que haveria de haver escolas de jornalismo, uma atividade assim mais ou menos do mesmo género?…

O problema é que, a partir de certa altura (finais do século XIX), os jornais deixaram de ser veículos de literatura ou instrumentos de propaganda política e passaram a ser aquilo que (re)conhecemos hoje: sítios de notícias. E trabalhar em informação sobre a atualidade não é exatamente o mesmo que escrever meia dúzia de divagações, comentários ou opiniões sobre algo que nos apeteça divulgar. Começa a desenvolver-se algum conhecimento sobre o novo métier, as suas especificidades, as técnicas, os géneros… e também sobre a vantagem de aprender alguma coisa disso. Mas não foi um processo imediato ou sequer rápido. Quem se dedicava àquela nova profissão (sim, que era de uma profissão que agora se tratava) sugeria, as mais das vezes, que o que era preciso era ter jeito. Era ter vocação. Era ter “faro”. Era ser predestinado. Era ter nascido para aquilo… E quem sabia alinhavar dois dedos de prosa com rapidez e criatividade era candidato natural à função: “Hummm… Cheira-me que este dá jornalista!…”

Aprender “na tarimba”

Não é que já soubesse tudo quem chegava de novo aos jornais. Ao jeito para escrever ou ao “nariz” para a notícia, tudo supostamente inato, acrescentava-se de seguida alguma formação no próprio jornal: aprender com os mais velhos, imitar o que eles faziam, aprender “na tarimba”, um pouco à maneira dos antigos artesãos que passavam o saber e o saber-fazer para os seus aprendizes. Nada de escola; apenas formação no local de trabalho, a acrescentar à tal predisposição de nascença… E durante décadas esta foi a tendência geral entre os profissionais do ofício, que recusavam qualquer interferência vinda de fora, e muito menos do sistema escolar, por desnecessária ou até abusiva.

Mas as coisas foram mudando, à medida que se acelerou a industrialização dos meios de comunicação social e se desenvolveu o negócio das notícias. O ofício de jornalista foi-se tornando mais complexo, mais exigente, mais competitivo, e foi-se impondo a necessidade de dispor de profissionais capazes de responder aos novos desafios. Lá se chegou, então, à criação de escolas de Jornalismo – ou de cursos de Jornalismo nas escolas, e desde logo nas universidades. Ainda assim, embora os primeiros cursos superiores tenham surgido nos primeiros anos do século XX, nos Estados Unidos e em França, Portugal teve de esperar até 1979 (!) para ver nascer o pioneiro curso de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa. Desde os anos 1930 que se desenvolveram tentativas diversas com esse propósito, mas o certo é que nenhuma delas vingou (e os 48 anos de ditadura que por cá se viveram entre 1926 e 1974 também não ajudaram nada…). Só quando já todos os países europeus ensinavam jornalismo nas universidades é que a novidade chegou cá ao burgo.

Hoje, podemos dizer que é bastante consensual a aceitação da importância de cursos superiores de jornalismo (cursos superiores, sim, que ensinar este ofício de modo completo não é fazer um simples curso de formação profissional acelerada com umas quantas técnicas prontas-a-usar…). Ainda assim, mantém-se esta questão em aberto: pode ser jornalista quem queira. O Estatuto do Jornalista, uma lei aprovada na Assembleia da República e promulgada pelo Presidente da República, di-lo claramente: “Podem ser jornalistas os cidadãos maiores de 18 anos no pleno gozo dos seus direitos civis.” Mais nada. Isto significa que ter um curso de Jornalismo não dá, legalmente, qualquer acesso à profissão (ou sequer um título profissional), ao contrário do que sucede com médicos, engenheiros, advogados, arquitetos, enfermeiros ou economistas… E porquê?

A doutrina prevalecente neste domínio sugere que ser jornalista é, no essencial, exercitar o direito à liberdade de expressão. Tratando-se de um direito fundamental, nenhum cidadão pode ser privado dele. Logo, nenhum cidadão pode ser impedido de ser jornalista… Terá de ser uma profissão “aberta”, sem condições prévias.

O direito à informação

Há, entretanto, quem defenda que a atividade do jornalismo não tem a ver apenas com o exercício da liberdade de expressão, esse direito fundamental. Tem a ver também com dar resposta a um outro direito fundamental nas nossas sociedades: o direito à informação – a uma informação completa, alargada, séria, independente, rigorosa, que permita aos cidadãos tomarem as suas decisões de modo mais capaz. O artigo 37 da nossa Constituição coloca estes dois direitos fundamentais a par: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.

Ora, para que seja dado conteúdo real a este nosso direito a sermos informados, convém que haja quem seja capaz de nos proporcionar informação séria, rigorosa, independente, completa. Ou seja, gente preparada para o fazer e com condições de se dedicar a esse ofício de modo profissional, a título permanente, com dedicação plena. Ou seja, jornalistas. E que, neste contexto, para além de terem mais de 18 anos e estarem “no pleno gozo dos seus direitos civis”, devem poder beneficiar de uma formação específica que os prepare para este enorme desafio. Daí a importância dos cursos de Jornalismo. É tudo isto que legitimamente esperamos que as nossas sociedades nos facultem.

Entretanto, alguém poderá contrapor: mas se não é preciso ter um curso para ser jornalista e qualquer pessoa pode sê-lo, para quê frequentar um curso desses? O que é que lá andam a fazer estas centenas de jovens que todos os anos se candidatam a eles?…

A verdade é que, apesar de não haver a exigência legal de ter um curso para se ser jornalista, ela tornou-se de facto uma exigência social (o académico espanhol Hugo Aznar considera-a mesmo uma exigência ética) e, em termos práticos, hoje em dia ninguém entra na profissão sem ter tido uma formação específica para ela. O simples facto de haver uma grande oferta desta mão-de-obra especializada (oferta muitíssimo superior à procura …) faz com que as empresas de média, quando precisam, recorram a pessoas com essa bagagem. Mais: numa grande parte dos casos, acabam por encontrar emprego como jornalistas as pessoas que, depois do curso, fizeram estágio curricular num determinado órgão de comunicação e, a partir daí, ficaram de algum modo ‘sinalizadas’ para quando surja uma oportunidade de trabalho. Ficam por vezes (muitas vezes…) a colaborar de modo algo precário e, quando a sorte sorri, acabam por entrar nos quadros da empresa.

Estamos muito longe dos tempos em que se olhava para o jornalista como um escritor, um poeta, um artista, sem qualquer necessidade de escola. Com a massificação dos meios e a mercantilização da informação noticiosa, a que acrescem hoje os desafios da enorme evolução tecnológica do contexto digital, ele passou a ser encarado cada vez mais também como técnico – e técnico muito qualificado. Por isso, e por tudo o resto que vem associado ao ofício, o jornalismo ensina-se, sim. E aprende-se… Não é que não deva haver lugar para a arte e a criatividade pelas bandas do trabalho jornalístico. Bem pelo contrário. Mas tem de haver mais do que isso.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.