Segundo o Diário da República, a atividade da rádio corresponde a um conjunto de pessoas que promove “serviços de programas radiofónicos”. Em Portugal, segundo a Obercom, existem cerca de 320 rádios locais espalhadas pelo país. O estudo revela ainda que a programação recai maioritariamente sobre música.
Ainda assim, com o evoluir dos anos e das novas tecnologias, são cada vez mais os ouvintes que a escutam através de emissões em formato online. A prova disso é o estudo da Marktest, o Bareme Internet, que revela que, entre o segundo semestre de 2018 e o de 2020, o número de inquiridos que diz ter o hábito de ouvir rádio online quase duplicou, evoluindo de 17% para 33,2%.
Em 2006, estabeleceu-se uma quota mínima para a música portuguesa nos serviços de programas radiofónicos. A lei previa que a programação musical fosse “obrigatoriamente preenchida em quota mínima variável entre 25% e 40%, com música portuguesa”. No entanto, três anos mais tarde, estabeleceu-se o valor no “limiar mínimo de 25%”.
Este ano, a partir de 29 de janeiro, a quota mínima passou a ser de 30%. “Decorridos mais de 10 anos, é tempo de proceder à atualização da quota mínima de música portuguesa nas rádios nacionais, assim cumprindo um objetivo que é de todos: a promoção da música e da língua portuguesa”, pode ler-se na Portaria n.º 24/2021. Desta forma, com entrada em vigor no dia 27 de fevereiro de 2021, todos os serviços de programas de radiodifusão sonora têm de manter, obrigatoriamente, “a quota mínima de 30% de música portuguesa”.
O anúncio foi feito pela ministra da Cultura, Graça Fonseca, no âmbito das medidas de resposta à pandemia Covid-19. A deputada recorda que a lei deveria ser revista anualmente. No entanto, já não era atualizada desde a sua implementação. Sendo assim, a situação pandémica impulsionou a urgência em “incrementar a divulgação de música portuguesa” e “a sua valorização em benefício dos autores, artistas e produtores”. Contudo, a reação das rádios não foi unânime.
A diminuição do volume da liberdade
No dia seguinte ao anúncio, a Associação Portuguesa de Radiodifusão (APR) repudiou a decisão, alegando que “não houve qualquer acordo prévio com as rádios em relação a esta matéria”. Aponta ainda que “foram várias as rádios que promoveram em antena uma campanha de contestação a esta intenção do governo”.
Da mesma forma, a Associação de Rádios de Inspiração Cristã (ARIC) mostrou “desagrado” e “desacordo” perante a implementação da medida. Garante que a limitação ou imposição “são conceitos que refletem falta de consenso e implicam a privação de liberdade”.
Por sua vez, o grupo Renascença e a Media Capital Rádios consideram o aumento “uma medida ineficaz” e “injusta”. Afirmam que o “caminho de imposição de quotas de música é anacrónico. Impor quotas de música na rádio é uma medida política do século passado que não tem em conta o mundo digital das plataformas de música internacionais, livres de quotas e de imposições que limitem a sua liberdade de programar”, pode ler-se na carta aberta.
Américo Simões: “Acho que nos estão a impor algo que não deveria ser imposto”
O diretor de programas da Rádio Santiago, Américo Simões, aproxima-se da opinião negativa. A primeira emissão da Rádio Santiago, localizada em Guimarães, remonta ao dia 7 de novembro de 1986. Na altura, era “tudo rapaziada entre os seus 15 e 20 anos”, eram “entusiastas da rádio” e, apesar da ordem para todas as rádios pirata fecharem, a entidade recebeu o alvará e o projeto manteve-se até aos dias de hoje.
Américo Simões reconhece que, atualmente, “é muito simples de se fazer uma rádio online, uma rádio online musical”. Garante que a transição do FM para o online foi fácil, até porque, “se uma pessoa vai ao online procurar uma rádio por tema musical, encontra milhares e milhares de estações de rádio. Agora o que é difícil é encontrar rádios com conteúdos próprios”.
Antes de avançar, faz questão de salientar que, mesmo assim, “o online NUNCA poderá ser um substituto da rádio”. Explica que “o online, quer queiramos ou não, é pago pelo ouvinte. O FM, qualquer pessoa, que esteja em qualquer parte, pode ligar a rádio e ouve sem ter de pagar NADA”. Se por um lado, uma pessoa é obrigada a pagar um pacote de internet, por outro lado, só precisa de comprar pilhas ou ter eletricidade em casa, bens que considera elementares.
Sublinha ainda que as rádios locais não se podem esquecer do seu propósito de nascimento. “Enquanto nós ocuparmos esse espectro, nós temos ouvintes. Nós não queremos combater diretamente com as rádios nacionais, mas se nós tivermos conteúdos que elas não têm, eles não combatem connosco nessa área”. Afirma a sorte que a Rádio Santiago tem, “nós aqui em Guimarães temos pessoas bastante bairristas, e tudo o que seja ligado à terra, elas abraçam, quase que sufocam”.
Relativamente à obrigatoriedade das quotas de música portuguesa nas rádios nacionais, afirma, entre risos, que isso, para eles, “é peanuts”. Porém, salienta que é “pena ser, ou ter que ser, uma obrigatoriedade, porque nós estamos a falar de uma empresa, que é uma empresa privada”.
Para além disso, acredita que esta medida acaba por impedir o alcance do público na sua totalidade. “Acho que nos estão a impor algo que não deveria ser imposto. Eu, para atingir um determinado público, tenho de o conquistar. Portanto, a música não pode passar na rádio só porque é recente ou só porque é portuguesa. Eu tenho de conseguir passar a minha música na rádio, porque a música tem um público, maior ou menor, mas tem um público”.
O diretor da rádio Onda Viva, José Alves, mantém a mesma posição. Acredita que “é o público que dita a rádio” e que “a língua portuguesa é uma língua bonita e que deve ser privilegiada”. Relativamente à medida imposta, acrescenta que “não há necessidade de haver quotas, há necessidade de haver bom senso”.
Para Américo Simões, a função da ERC nas quotas de música portuguesa pode, ainda, ser comparada ao Big Brother.
Áudio: Américo Simões, Diretor da Rádio Santiago sobre a função da ERC
O lado B
Já sincronizados noutra frequência, mais de 450 músicos e autores portugueses, subscreveram uma carta aberta, na qual pediram ao público para que ouça as suas músicas na rádio. O manifesto contou com a participação de alguns dos maiores artistas nacionais, incluindo a Ana Moura, a Aurea, o Bezegol, o Augusto Canário e o Frankie Chavez.
“Precisamos do contacto com o nosso público, precisamos que nos ouçam e de sentir que nos estão a ouvir. Queremos voltar a ouvir as vossas palmas e a escutar as vossas vozes a cantar connosco. Temos saudades de vos sentir perto de nós.
Queremos estar presentes nas vossas vidas, mesmo que hoje não possamos estar fisicamente juntos.
Não queremos a nossa e vossa Música confinada a um pequeno espaço. Porque queremos ser a vossa companhia todos os dias, ao longo do dia, foi com satisfação que recebemos a notícia que agora nos vão ouvir mais.
Queremos sentir-vos em sintonia com a nossa Voz e a nossa Música. Queremos que continuem a ouvir MÚSICA PORTUGUESA, nas ondas da Rádio.
Queremos que sintonizem e ouçam a música que é a Nossa.
A Nossa Música na Rádio Portuguesa”.
Por sua vez, a Associação Fonográfica Portuguesa (AFP) e a Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos (Audiogest) mostraram satisfação quanto à decisão. O presidente da direção da AFP, João Teixeira, admite que o valor final das quotas fica aquém das expectativas. Porém, congratula o passo dado “no sentido certo”. O diretor-geral da Audiogest, Miguel Carretas, enaltece que “esta medida trará também um impacto positivo direto na distribuição de direitos a produtores musicais nacionais”, lê-se no site da Audiogest.
“O artista já há muitos anos é o bobo da corte”
Diogo Agapito, músico e produtor musical, considera que a música portuguesa “é daquelas coisas que só quando precisamos dela é que a valorizamos. O artista já há muitos anos é o bobo da corte”. Face a isto, confessa que é um caminho profissional difícil de alcançar.
Enquanto produtor e ciente, desde cedo, destas dificuldades, admite que nunca tentou estabelecer contacto com as rádios nacionais. Ao invés, refere que as rádios locais do Minho, nomeadamente, a Antena Minho, são sempre rádios que lhe “abrem as portas”, já que estes pequenos aparelhos só “passam aquilo que o público quer ouvir”.
No que toca à obrigatoriedade e ao aumento da quota de música portuguesa, mantém uma posição a favor. Ainda assim, admite que é preciso ver esta decisão de uma outra perspetiva – “isto não funciona com o objetivo de revelar novas caras, mas para alimentar as que já lá estão”. Apesar de não saber por onde pode passar a solução, confessa que os músicos “têm de perceber e moldar-se porque estão a remar contra uma maré”.
Acredita que, hoje em dia, a reinvenção passa, “incontornavelmente” pelas redes sociais. “Acho que já não é uma novidade, inclusive, os artistas mais velhos, com 60/70 anos, já perceberam que é assim que se faz”. Desta forma, afirma que as plataformas digitais já não são “aquele sonho americano – vou entrar nas redes sociais, vou começar a fazer a música e vou começar a ter muito sucesso, não”.
Apesar de reconhecer que têm como público um grupo da faixa etária mais jovem, o diretor da Rádio Santiago, acredita que os jovens “rádio não ouvem, televisão não vêem. Estão no Youtube, é on demand, no Spotify, é on demand, e depois há um algoritmo que lhes preenche as necessidades”.
Áudio: Américo Simões, Diretor da Rádio Santiago sobre o poder dos algoritmos.
Desta forma, basta analisar as músicas mais ouvidas no Spotify. Tendo em conta que a música brasileira conta como música portuguesa, na semana de 29 de abril, o TOP10 em Portugal foi preenchido com 80% de música portuguesa. Para além disso, percebe-se uma diversidade de géneros musicais.
“Eu sei que na autoestrada só posso andar a 120, não foi preciso ser parado pela polícia para cumprir”
Junto à Rádio Universitária do Minho (RUM), Abel Duarte, locutor e responsável pela produção, e João Rebelo, membro do Departamento Técnico e de tudo o que diz respeito à gestão de conteúdos que vão para antena,garantem que a RUM cumpria com a exigência mesmo antes de esta ser imposta. De qualquer das formas o surgimento da medida obrigou a que “tudo o que vai para a antena tem que ser devidamente estudado e escrutinado”.
Abel Duarte afirma que “antes a lei já existia, não existia era controle”. Sendo assim, explicam que a ERC disponibilizou uma plataforma de monitorização do cumprimento dos valores. “Tudo o que é passado em emissão é registado num ficheiro que tem o nome da banda, da música e da nacionalidade do artista. Todos os ficheiros são registados numa determinada aplicação e depois é feita a compilação desses dados. De seguida são enviados para a ERC que os fiscaliza”.
O locutor declara que “as quotas sempre estiveram implícitas, mas não havia um controle efetivo do cumprimento”. Agora, segundo a Lei n.º 54/2010, de 24 de dezembro, o incumprimento da medida pode dar lugar à “sanção acessória de suspensão, por período não superior a três meses, do título de habilitação para a emissão do serviço de programas onde se verificou a prática do ilícito”.
Deste modo, “antes tínhamos mais liberdade para passar outras coisas”. João Rebelo refere que, no fundo, “esta obrigatoriedade vai dar ao mesmo. Eu sei que na autoestrada só posso andar a 120, não foi preciso ser parado pela polícia para cumprir”.