Houve tempo em que os jornalistas desportivos eram algo desconsiderados, mas esse tempo já vai longe. Ainda assim, a coexistência de muita diversidade de pessoas nos espaços de notícia e debate sobre desporto suscita por vezes algumas confusões entre “quem é quem” e a que regras está obrigado. Porque os princípios e as normas do jornalismo aplicam-se a todas as especialidades, sejam desporto ou política, economia ou cultura.
Os jornalistas desportivos já foram considerados uma espécie de “parentes pobres” deste grupo profissional. Mesmo entre oficiais do mesmo ofício, no seio das redações, não era raro haver quem olhasse para a secção de Desporto como uma secção, digamos assim, menos nobre – menos, certamente, que a Política, a Economia, a Cultura ou o Internacional. Na base do preconceito estaria, em alguns casos, uma perspetiva elitista com que se encaravam os assuntos “da bola” (sim, da bola, porque falar de desporto nos meios de comunicação social significava quase sempre falar de futebol…). Para este olhar contribuiria decerto o facto de haver tradicionalmente, nos jornais e nas rádios, bastantes colaboradores da área desportiva, amadores das mais variadas proveniências que aos sábados e aos domingos davam alguma ajuda nas notícias (muitas vezes apenas trazendo as informações, nem sequer escrevendo os textos a publicar) mas que não eram propriamente jornalistas. A verdade é que muitos desses colaboradores acabaram por se tornar jornalistas profissionais – e por chegar até a lugares de direção – pois, num tempo em que não havia cursos de jornalismo no país, era essa tarimba que, a pouco e pouco, permitia ir ficando mais tempo pelas redações e levar a que, passado algum tempo de tirocínio, se abraçasse o ofício a tempo inteiro. Nada disto, desta alargada coexistência profissionais-amadores no trabalho redatorial, se verificava nas secções ditas “nobres” do jornal (porventura com a única exceção do noticiário regional), o que terá decerto contribuído para disseminar a ideia de que qualquer um(a) podia fazer jornalismo desportivo, esse género “menor”, supostamente sem grandes problemas de acompanhamento ou necessidades de especialização.
Por essas ou por outras razões, muitos jornalistas desportivos acabaram por ver dificultado o seu acesso à profissionalização: quando foram criados os primeiros periódicos especializados em temática desportiva, quem neles trabalhava não tinha acesso ao título profissional, pois este estava reservado exclusivamente a quem pertencia aos quadros de pessoal dos jornais diários. Muita água correu, entretanto, debaixo das pontes e, hoje, não há qualquer diferença de tratamento entre jornalistas no plano formal, associativo, sindical ou outro. Não obstante, subsistem algumas zonas de controvérsia que têm a ver, em minha opinião, com dois domínios: o da nem sempre clara distinção de papéis entre “quem é quem” na cobertura e acompanhamento das temáticas desportivas, e o da nem sempre escrupulosa observação das regras básicas da profissão na informação de desporto.
Diferentes perfis, diferentes papéis
Olhando para quem escreve nos jornais desportivos, para quem se ocupa do desporto nas estações de rádio e para quem trata destas matérias nos diversos canais de televisão, percebemos uma coexistência entre pessoas de perfil bem diverso: há relatadores ou narradores, há comentadores, há analistas, há adeptos… E talvez nem sempre seja muito claro, para quem ouve ou vê, quem é e quem não é jornalista. E o que é que isso importa?, perguntarão vocês. É verdade que importa, e importa muito, pois um jornalista é regido por um conjunto de princípios e regras que não obrigam da mesma maneira outros profissionais (ou amadores) que se ocupam do desporto nos meios de comunicação. Por exemplo, um jornalista e um comentador têm obrigações diversas e uma diferente liberdade de atuação, pois aos primeiros exige-se uma capacidade de distanciamento, de esforço de objetividade, de atenção aos factos mais do que às opiniões, que não se exige aos segundos – de quem se espera, precisamente, uma opinião, uma leitura pessoal, uma escolha. E então quando o comentador é um adepto (e que foi convidado para participar num programa de debate precisamente por ser um adepto), o que menos se espera é isenção, distanciamento, rigor. Pelo contrário, parece que muitos responsáveis desses programas até gostam de espicaçar os aficionados de tal ou tal clube, para que a discussão fique mais acesa…
Claro que as fronteiras não são estanques nem rígidas. Muitos jornalistas são frequentemente convidados a comentar a coisa desportiva, e aí é óbvio que podem (e devem) dar as suas opiniões, pois disso mesmo se trata. E mesmo quando reportam sobre determinado evento, não se limitam à secura dos factos narrados em sucessão, mas volta e meia acrescentam-lhe alguns elementos de contexto, um pouco de análise, um tanto de interpretação… e tudo bem, fica o “texto” mais rico (sem esquecer que são profissionais que estão a dar opinião com nome próprio e não escondidos no anonimato). Mas mesmo aqui há alguns limites a observar, se o jornalista quer de facto manter o seu estatuto de profissional isento, rigoroso e credível – ou seja, alguém que se sabe (e se percebe) ser orientado por critérios jornalísticos e não por preferências clubistas ou por interesses mais ou menos ocultos. Ora o mesmo não se diz necessariamente de outras pessoas – analistas, especialistas, comentadores – que, tendo embora a obrigação de falar com um mínimo de bases e de argumentos, não precisam de respeitar certas limitações que impendem sobre os jornalistas. Não é que uns sejam melhores e outros piores; são, sim, diferentes – e desempenham papéis diferentes.
Mostrar o todo ou mostrar só parte
Um exemplo muito debatido desta maior ou menor capacidade de distanciamento tem a ver com a cobertura de eventos desportivos em que está envolvida a seleção nacional. É compreensível que um comentador português se entusiasme a falar dos feitos da seleção portuguesa durante um campeonato europeu ou mundial, mas já não parece aceitável que um jornalista português se esqueça dos seus deveres de reporte rigoroso e distanciado, e se deixe levar, como qualquer outra pessoa sem especiais responsabilidades, por entusiasmos nacionalistas. Um comentador, ou um adepto, ou um político, ou um dirigente desportivo, podem aparecer num programa levando ao pescoço o cachecol da “nossa” seleção. Um jornalista não pode. Não deve. Nem levar o cachecol nem falar da “nossa” seleção. Não somos “nós” que jogamos contra os espanhóis ou os franceses; é a seleção portuguesa que joga contra a seleção espanhola ou contra a francesa. Quando os jornalistas se esquecem disto, ajudam precisamente a criar aquela confusão de que atrás se falava, a propósito de quem é ou não é jornalista, e de que obrigações não pode esquecer-se um jornalista, em nome do seu papel, do seu crédito, da sua responsabilidade social. Quando parece que “eles são todos iguais”, há algo que se perdeu no caminho. Insisto: não se trata de ser melhor nem pior; trata-se de ser fiel aos princípios, valores e regras de uma profissão, com isso ganhando o respeito e a confiança do público.
Confusão existe também num outro domínio, o de jornalistas desportivos que trabalham para televisões de clube (como as que existem entre nós). O assunto não é novo: antes de haver televisões, já havia jornais de clube, nalguns casos empregando jornalistas. E noutro domínio, o da política, é antiga também a polémica sobre se jornalistas que trabalham para publicações partidárias devem poder manter o seu título profissional. A dúvida é, em todos os casos, a mesma: um jornalista que trabalhe para um jornal/ rádio/ televisão de clube (ou de partido, ou de empresa, ou de instituição) pode manter uma condição de isenção, de distanciamento, de neutralidade, como lhe é exigido pelas boas práticas profissionais, e designadamente pelo seu código deontológico? Ou, pelo contrário, arrisca-se a trabalhar mais em promoção / propaganda do que em jornalismo e, portanto, deveria suspender a sua carteira profissional (como fazem todos os jornalistas que trocam o seu ofício pela publicidade, a assessoria, o marketing ou as relações públicas)? Desses jornalistas não se espera, precisamente, que sejam parciais, que promovam ativamente o seu clube ou partido, que enalteçam o que é bom e escondam o que é mau, que critiquem os adversários mas não se critiquem a si próprios? O assunto é controverso e o seu debate (muitas vezes bem acalorado dentro do grupo profissional dos jornalistas…) vem de longe. Costuma argumentar-se que isso da isenção não é um princípio absoluto, pois no fundo ninguém é totalmente isento, não há distanciamento puro, todos temos a nossa dose de subjetividade, quem diz que é objetivo é quem mais nos engana, etc., etc., e afinal o que é importante é sermos honestos, não escondermos nada, fazermos tudo às claras, etc., etc. O problema fica bem exposto quando surgem conflitos de interesses. E acabam sempre por surgir, mais tarde ou mais cedo, pois uma televisão de clube não é feita para noticiar com isenção o que se passa no desporto; é feita para promover o “nosso” clube, para o enaltecer, para o engrandecer, para mostrar o bom que ele é. Ora não é isso que se costuma pedir a um jornalista quando vai trabalhar para um órgão de informação. Pede-se-lhe um compromisso com a verdade, com o rigor, com a isenção “doa a quem doer”, com o equilíbrio, com a procura de todas as leituras e opiniões, tanto de seguidores como de adversários. E falemos com franqueza: são estes os princípios que vemos seguidos e respeitados nas televisões dos clubes, nos jornais dos partidos, nos boletins das câmaras municipais, nas revistas das associações empresariais?… E mesmo que os jornalistas que aí trabalham nunca mintam, não haverá tanta vez em que só podem dizer ou mostrar uma parte da verdade?…
Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.