Os fãs começam a regressar gradualmente ao futebol. Com eles, volta a emoção, a tensão e tudo o que faz o desporto rei. Mas há uma ferida da pandemia que deverá demorar mais tempo a sarar: os danos feitos na formação. Pior ainda estiveram as modalidades de pavilhão, que viram o número de atletas drasticamente reduzido. Falámos com crianças que viram a sua prática desportiva interrompida, pouco depois de começar, com atletas que perderam o último ano antes do salto para os seniores, e com treinadores que procuraram manter a motivação alta, à distância.
“Acho que não teria conseguido manter a motivação. É difícil ficar motivado quando te tiram um ano tão importante como é o segundo ano de juniores”. João Oliveira, 18 anos, central do Sacavenense, não esconde que a pandemia da COVID-19 foi uma entrada de carrinho que desequilibrou os seus planos desportivos. O jovem revela o impacto sentido com a paragem em 2020, e, não fosse a chamada à equipa de seniores, dificilmente se teria mantido motivado para continuar jogar: “O segundo ano de juniores é quando damos o salto para os seniores, para jogar já com os homens, e a paragem prejudicou-me um bocado”.
Áudio: Pedro Costa (Sacavenense), Tomás Godinho (Sacavenense), Guilherme (Frassati Futsal) e João Oliveira (Sacavenense) recordam os tempos de confinamento.
Tomás Godinho, 18 anos, guarda-redes do Sacavenense, conta que no início desvalorizou a situação: “nas nossas idades, ninguém acreditava nisto, pensava que era tudo uma brincadeira”. No regresso, os treinos sabiam a pouco. “Tínhamos saudades de treinar, mas não era aquela coisa, porque não podíamos entrar ‘rijo’ ”. Também ele entrou na equipa sénior e no início houve muitos regressos a casa com o corpo dorido pelos remates defendidos. Os treinos “eram puxadinhos”, conta-nos.
Pedro Costa, avançado no Sacavenense há 3 anos, mostrou-se desiludido: “Foi uma desilusão. Ainda tínhamos objetivos, mas tivemos de continuar a trabalhar em casa… como deu. Os misters mandavam-nos uns planos individuais, de corrida, de força, umas coisas mais específicas. Foi mais difícil manter a forma física, porque não havia contexto de competição. Correr na rua não é igual a correr no treino” O que pensavam ser uma paragem de 2 semanas transformou-se numa interrupção forçada de 8 meses entre Março e Outubro.
As dificuldades não aconteceram só no futebol e com jovens da idade do João, do Pedro e do Tomás. Os atletas de futsal Rodrigo e Guilherme têm 12 anos e começaram a jogar futsal aos 4, ainda no escalão Fraldinhas. Sendo universais, é caso para dizer que jogam onde o mister quiser e querem é estar sempre dentro da quadra.
O Martim tem 11 e joga desde os 7, é o fixo dentro do terreno de jogo e fixo também na paixão que tem pelo desporto. Depois da escola, os 3 acabavam o dia a treinar no pavilhão coberto do Clube Futebol Varejense, envergando ao peito o símbolo da Associação Frassati.
Desde da fundação da Frassati, em 2005, este pavilhão tem sido a “casa” deste clube da 2ª divisão distrital de Lisboa. É aqui que Martim, Rodrigo e Guilherme têm crescido e desfrutado do seu amor pelo futsal. Com as competições dos escalões mais novos interrompidas, estes atletas sentem falta da competitividade e Guilherme confessa: “Comecei a comer mais e engordei uns quilinhos”. Mas esses “quilinhos” não pesam na sua decisão. Desistir não passa pela cabeça de nenhum destes jovens.
O futebol e o futsal registavam, em Dezembro de 2020, 28 741 atletas federados. Em 2019/2020, antes da pandemia, o número superava os 130 000. As quedas são de 76% no futebol masculino e de 85% no futsal masculino.
Olhando para as restantes modalidades, o Hóquei em Patins é o que menos praticantes tem, quer no setor Masculino como no Feminino. O Voleibol foi a modalidade que registou a maior quebra, 86%, o que corresponde a 42 837 atletas.
O escasso número de atletas indica que já havia dificuldades em algumas zonas do país em organizar provas competitivas em todas as modalidades. A pandemia reduziu os praticantes e pode haver dificuldade em reatar competições, confessa Rui Lança, diretor de Modalidades Coletivas de Pavilhão do Sport Lisboa e Benfica. Na sua opinião, o risco de surgimento de novas variantes do vírus pode ser um travão: “será difícil voltar tão cedo a um cenário como se nada tivesse acontecido.”
João Oliveira passou pelo Casa Pia, Belenenses e Cova da Piedade antes de representar o Sport Grupo Sacavenense. Começou a treinar em Setembro, mas foi com a chamada aos seniores, em janeiro, que voltou aos treinos de alto nível. Descreve essa experiência focando sobretudo a “agressividade, intensidade e mais contacto.” Quanto às noções táticas diz: “no início não é fácil, mas depois vamo-nos lembrando”.
Pedro é uma das principais promessas do clube. A estreia pela equipa principal era há muito discutida entre adeptos e dentro da estrutura do clube. Quando aconteceu, a 7 de fevereiro deste ano, foi recebida com naturalidade.
Apesar da diferença de posições, será difícil não o comparar a Diogo Ferreira, jovem médio que também saiu da fornada de Sacavém e, em 2019, rumou ao Vitória Sport Clube. Rúben Saque, diretor da equipa de juniores do Sacavenense, não tem dúvidas: durante este ano e meio, um ou mais “Diogos Ferreiras” podem ter sido perdidos.
O regresso a meio gás
Cronologia: As duas travagens no futebol de formação, em março de 2020 e novembro do mesmo ano, e a tentativa falhada de retoma entre elas.
Entre março de 2020 e abril de 2021, as camadas jovens não estiveram totalmente paradas. Entre setembro e novembro, houve um regresso aos treinos, embora sob diretrizes rígidas que impunham um distanciamento social de três metros entre praticantes.
Nem todos os clubes cumpriram as regras estipuladas. Rúben Saque e Rui Lança não mencionam nomes mas afirmam saber de clubes que jogavam entre si. Os que cumpriram sentiram os efeitos negativos da paragem.
Nenhum dos jogadores sentiu grande evolução com essas sessões. Pedro Costa recorda com poucas saudades a tentativa de recomeço da época. “Não podia haver contacto, depois alargaram as medidas e numa segunda fase já podia haver, mas depois parou e já não houve evolução”.
Para Tomás Godinho, foi um regresso bem vindo, mas que ficou curto e que soube a pouco. O prazer sentido existia apenas pelas saudades da prática desportiva.
No final da temporada dos Seniores, chegou a recompensa para os três atletas. Pedro Costa estreou-se em fevereiro, João Oliveira e Tomás Godinho fizeram-no no último jogo da época, frente ao União de Santarém. Ambos entraram na segunda metade do encontro, que terminou com um empate 1-1.
Entre maio e junho, os jovens jogaram a Taça AFL Sub-19, uma competição especialmente criada para o regresso de formação nesta época. Aqui, o destaque foi para Pedro Costa. O avançado apontou 11 golos em 10 jogos, incluindo quatro na mesma partida (uma vitória por 10-1 contra o Amora). Na Série D, que contava com FC Alverca, Vitória FC, Estoril Praia, Amora FC e Vilafranquense, o Sacavenense terminou em quarto lugar, com cinco vitórias, um empate e quatro derrotas.
No banco
A situação não é menos exigente para treinadores e dirigentes dos clubes. Nuno Santos tem 46 anos, é treinador de Futsal na Associação Frassati há sete. Começou nos Petizes e foi subindo nos escalões ao mesmo tempo que os seus jogadores, estando agora nos Infantis. Conta que ao ver o filho a dar os primeiros toques na bola renovou o seu amor ao futsal. A parte pedagógica e tática do jogo reacenderam a chama da competitividade e aceitou o convite para ser treinador quando este surgiu.
O mister conta que ainda se tentou o regresso nas duas semanas em que as regras permitiram um alívio nas restrições impostas. Mas ao pedido dos jovens atletas, “mister, vamos jogar uns contra os outros”, tinha de rejeitar a peladinha e inventar outras soluções, pois tal não era possível.
A gestão durante e para o pós-pandemia
Áudio: Nuno Santos reflete sobre o impacto da pandemia nas modalidades dos clubes. Um problema que começa na formação, mas que se vai alastrar às camadas seniores.
As tecnologias ajudaram a manter algum contacto. Nuno Santos criou um grupo de WhatsApp para partilharem alguns exercícios. Em parte, para garantir que a PlayStation não se torne o hábito em substituição do futsal. Espera conseguir convencer os pais com outras motivações e evitar um efeito bola de neve. Teme o impacto que as desistências nos escalões mais jovens possam provocar nos juniores e nos seniores. Rui Lança partilha esta visão. “É de pequenino que se torce o pepino”, algo especialmente importante numa realidade como o futsal que perdeu 84% dos atletas que tinha antes da pandemia.
Áudio: Rui Lança fala da “bola de neve” que a paragem da formação provoca.
Rúben Saque diferencia o impacto em função dos escalões. Aponta os sub-19 como os grandes lesados pelo facto de não terem tido oportunidade de se mostrarem num ano decisivo. Revela que os treinadores tiveram liberdade para trabalhar e destaca o lado psicológico, necessário “para ver se não desmotivam mais”. Identifica uma perda de inteligência tática associada à paragem competitiva. A inteligência tática no futebol corresponde à produção de uma solução para uma situação de jogo específica, seja ela individual, de grupo ou de equipa.
As modalidades coletivas de pavilhão
É no exterior dos Pavilhões do Complexo Desportivo do Estádio do Sport Lisboa e Benfica que encontramos Rui Lança. O telemóvel é uma extensão do corpo. Sente-se a urgência nas solicitações de que é alvo sobre os mais diversos assuntos pelos quais é responsável. Nos corredores circulam funcionários e atletas. O desporto sénior regressou em Agosto de 2020 mas, à data da entrevista, a formação estava ainda impedida de treinar ou jogar. Não há nenhum miúdo ou miúda de sorriso no rosto em correrias, dribles ou a gritar golo.
Rui Lança prevê que o pós-pandemia existirá com muitos menos miúdos. No meio das dificuldades houve, contudo, alguns que aproveitaram as oportunidades que surgiram, tendo até feito a sua estreia de águia ao peito sem antes jogar nos escalões juniores. É o caso de Marco Tavares que se estreou em jogos oficiais na UEFA Futsal Champions League após dois dos guarda-redes dos encarnados testarem positivo à COVID-19. É uma história (mais) feliz, mas a maioria dos atletas no desporto nacional sentiu dificuldades.
Questionado sobre as mudanças a nível organizacional, afirma que houve coisas que melhoraram com a pandemia: “as federações começaram a falar umas com as outras. Aperceberam-se que o inimigo não é a federação do lado, mas sim incrementar o hábito de desporto regular. Há uma quantidade de pessoas a praticar desporto que não conseguimos quantificar. O pessoal que está nos paredões, que vai fazer surf, os que pegam nas bicicletas… Houve uma maior predisposição para as pessoas fazerem exercício físico e perceberam que não precisam de estar inscritos nos ginásios a pagar mensalidades. Aí acho que se ganhou uma nova cultura. As federações vão ter de ir atrás do prejuízo e organizarem-se melhor.”
São os clubes quem na verdade faz a política desportiva em Portugal, afirma Rui Lança. Alguns concentram toda a oferta desportiva, incluindo natação, ginástica e mais modalidades. Existem clubes que até se substituem às autarquias, e não hesita em concluir: “se as câmaras tivessem de fazer tudo o que estes clubes fazem, iriam precisar de mais recursos. Às vezes no Benfica tenho essa discussão ao explicar a quem está no futebol profissional que muitas destas modalidades existem porque há pessoas que trabalham de forma gratuita. Numa câmara municipal ou no IPDJ (Instituto Português do Desporto e Juventude) isso é impensável. O desaparecimento de um clube tem um impacto muito grande, esses jovens não vão ser agarrados pelas câmaras municipais e muito menos pelas escolas”.
Ouve-se o bater da bola no piso de madeira. O telemóvel voltou a tocar e despedimo-nos dos pavilhões, cujas bancadas estão completamente despidas.
Áudio: O bater da bola de basquetebol ecoa pelo pavilhão de modalidades do SL Benfica.
A motivação é agora o principal fator de esperança. Os três jovens jogadores do Sacavenense admitem que a chamada aos seniores foi importante para os níveis anímicos subirem. O certo é que todos eles acabaram a jogar com “os homens”: no final da época 2020/2021, já com outro ritmo e mais minutos de treino nas pernas, Pedro, Tomás e João tiveram a sua recompensa. Todos jogaram na última partida do Campeonato de Portugal, num jogo que terminou num empate 1-1 frente ao União de Santarém. Pedro Costa foi titular pela primeira vez (já se tinha estreado como suplente frente ao Torreense), João e Tomás tiveram os primeiros minutos em campo pela equipa sénior do Sacavenense. Pela frente, vão jogar a Taça da Associação de Futebol de Lisboa, torneio que marca o regresso do futebol de formação.
Guilherme sente uma enorme vontade de voltar ao campo. O universal de 12 anos afirma: “Penso em continuar. Nunca quero desistir, o futsal é uma das coisas que mais gosto, principalmente porque estou com os meus amigos. Independentemente do coronavírus, nunca deixarei de praticar desporto”.
Áudio: Guilherme, do Frassati, diz que “nunca quererá desistir”, mesmo depois das dificuldades criadas pelo vírus.