Para além dos limites
Uma história de aceitação e superação
Inês Vara e Marta Rodriguez (Escola Superior de Comunicação Social)
Parece ser uma rapariga normal, comum, que vai à faculdade e que gosta de passar o tempo com os amigos e a família, mas distingue-se de todos pela grande bagagem de vida que traz com ela. Descreve-se como feliz e descontraída, o que disfarça as fases menos boas pelas quais já passou ao longo do seu percurso.
Susana Veiga tem 20 anos e é de Sintra. Fez grande parte do seu percurso académico – do 1º ao 12º ano – no Colégio Vasco da Gama, sendo que no secundário seguiu a área de Ciências e Tecnologias. Em 2018, entrou no curso de Engenharia e Gestão Industrial no Instituto Superior Técnico, mas rapidamente mudou de ideias e, em 2020, resolveu seguir a área da Educação.
Dois anos não são nada quando “temos uma vida pela frente”. Para Susana, existe algo que se afigura como uma “oportunidade de uma vida”, enquanto que um curso é algo que pode “tirar quando quiser”.
Marcada pela diferença
Com um ano de idade, a vida de Susana ficou afetada para sempre, e o seu rumo foi traçado, como se fosse o destino. De um dia para o outro, tudo mudou de forma radical. A sua perna direita congelou, e deixou de mexer. Ainda hoje, não há explicação. A única coisa que se sabe é que todo o sistema nervoso ficou afetado, e Susana nunca pôde andar de forma normal, igual aos outros. Ficou marcada pela diferença. Ser totalmente saudável é uma realidade desconhecida para Susana, que sempre se conheceu desta forma: com uma deficiência.
“Isto não é algo que tenha uma cura no momento. Não sabemos como é que o futuro vai ser, mas por agora é uma deficiência que não vai passar disso”
Áudio: Susana Veiga fala sobre a deficiência
Por causa da deficiência, Susana passou por momentos difíceis. A dor não lhe é alheia. As operações a que teve de se submeter são exemplo disso. Com apenas seis anos, colocaram-lhe um estabilizador na anca. “Correu bem, porque eu coxeio e ando com a anca de lado, por isso a anca podia-se deslocar”, relembra.
Em 2012 foi a segunda operação, mas desta vez ao pé: “Mexeram-me nos tendões, para que o movimento ficasse compensado. A teoria era boa, mas na prática não correu assim tão bem. Consegui ganhar a curvatura do pé, mas não o movimento na totalidade”. Por último, em 2014 estenderam-lhe o fémur: “No espaço de cinco semanas, cresci cinco centímetros. Foi uma operação complicada, porque é algo arcaico e violento, mas tinha de ser feito. Foi a mais dolorosa, mas correu muito bem”. Embora com melhorias, nenhuma destas operações resolveu o problema.
No entanto, a deficiência não foi algo que lhe trouxe apenas coisas negativas. Até pelo contrário.
“Eu acho que se me dessem a escolher entre ter uma deficiência ou não, eu ficava assim, porque esta é a minha vida e eu não me conheço de outra forma”
A deficiência abriu-lhe oportunidades, concedeu-lhe experiências, e acabou por lhe dar a conhecer uma paixão. Se não fosse a deficiência, a sua vida não tinha chegado onde chegou. Não a tinha levado onde levou. Quando começou a crescer, percebia que tinha uma diferença, mas não deixava, ainda assim, de fazer aquilo que queria, e que isso a definisse.
“Dentro de todo o azar que eu tive, eu tive muita sorte. Eu tenho esta deficiência, mas não é limitativa ao ponto de depender de alguém. Eu nunca gostava de dizer que tinha uma deficiência, eu dizia sempre que tinha só um problema na perna, mas agora já me consigo aceitar muito melhor”.
Apesar de a palavra ‘deficiência’ ser um bocadinho pesada, Susana já não a conota como algo negativo, embora a sociedade ainda o faça. A sua mensagem também passa por tentar que esse preconceito seja eliminado. Porque, na realidade, uma pessoa deficiente pode conseguir fazer tudo e até muito mais do que uma pessoa normal, sem limitações.
“A água é o meu habitat natural”
A perna estava debilitada e precisava de ganhar força e músculo. A natação entrou na vida da Susana como uma recomendação médica. “Era o desporto mais completo”, uma vez que “o facto de não haver gravidade permite um melhor movimento da perna”.
Começou no clube Arsenal em Ouressa, quando ainda andava na pré-primária, mas para Susana a natação não passava de uma obrigação: “Eu ia para a natação porque tinha de ir. A logística da natação para mim era demasiado grande, e vestir um fato de banho era muito complicado para uma criança”.
Assim que entrou no Colégio Vasco da Gama (CVG) fez natação enquanto atividade extracurricular, até que, em 2009, a convidaram para entrar na equipa da pré-competição.
Fotografia: Susana na piscina de Ouressa, com seis anos. Fotografia cedida por Susana
“Depois comecei a perceber que ganhei uma grande paixão [pela natação], e neste momento posso considerar a natação como um escape e também como o meu emprego, porque sinto que isto ocupa muito tempo do meu dia-a-dia, e na minha rotina. É aquilo que eu gosto de fazer, mas ao mesmo tempo [é] a minha profissão.”
Áudio: “O que a deficiência me trouxe”
“Agora, [como Michael Phelps disse uma vez], «a água é o meu habitat natural. É na água que eu me sinto bem.»”
A natação considerada “pura” foi o ponto de partida de Susana e também a modalidade de competição que ocupou a maior parte do seu percurso enquanto atleta. De acordo com a associação de natação de Lisboa, esta modalidade tem como objetivo perceber qual o nadador mais rápido, dependendo do “estilo de nado”.
Só em 2018, com 18 anos, é que Susana entrou para a vertente da natação adaptada, porque não queria que as pessoas a reconhecessem pela sua deficiência: “Eu queria que as pessoas vissem que eu tinha uma deficiência, mas que conseguia, na mesma, estar na natação pura”. No entanto, a última operação deixou-lhe a perna um pouco debilitada e tornou-se numa das razões que a levou a entrar na vertente adaptada.
A principal diferença entre a natação “pura” e a “adaptada” traduz-se no modo de classificação tendo em conta as diferentes limitações dos atletas. Na natação adaptada existem diferentes entidades reguladoras que vão ter as características especiais dos atletas em atenção. A World Para Swimming está encarregue das deficiências motoras, intelectuais, de paralisia cerebral e invisuais. A Down Syndrome International Swimming Organisation é a responsável pelos portadores de síndrome de Down. Por último, os atletas surdos estão ao encargo do International Committee of Sports for the Deaf.
“Nós temos atletas a competir sem uma mão, ou sem uma perna, ou sem um pé. E ter uma mão ou um pé é completamente diferente na natação. O impulso é completamente diferente”, afirma Nuno Quintanilha, o treinador de Susana, que também já foi atleta de natação pura no CVG.
Fotografia: Susana e o treinador Nuno Quintanilha. Fotografia cedida por Susana
Por isso, na vertente adaptada os atletas são divididos por classes, tendo em conta as suas deficiências, de modo a competirem com outros atletas que tenham deficiências semelhantes.
Áudio: Susana Veiga fala sobre a natação adaptada
Para Susana, a natação adaptada é muito mais marcante, porque é possível ter acesso a outras realidades e a “pessoas que têm deficiências, com histórias de vida brutais, ou mais negras ou mais felizes”. É nesse momento que se apercebe de que está a fazer parte de um movimento paralímpico.
Enquanto atleta, Susana tem capacidade para fazer provas de natação pura, como por exemplo de crol e de costas. Até já ouviu de outros atletas que conhece: “Fogo, como é que é possível, eu tenho tudo no sítio e tu ainda me ganhas?”
Assim, Susana continua a praticar esta modalidade com atletas sem deficiências. Perto deles, sente-se motivada e sente que também os motiva. No entanto, já não poderia fazer uma prova de mariposa junto destes atletas, ditos “normais”. Se o fizesse seria desclassificada por não ter um movimento de pernas simétrico, uma vez que não tem a mesma força nas duas pernas.
A sorte de Susana é ter um horário escolar que a ajuda a conciliar a rotina de estudante com a rotina de alta-competição. A folga é ao domingo e sábado só tem treino de manhã. Nos restantes dias da semana, acorda todos os dias por volta das 5h30m da manhã e segue caminho para às 6h e 15min estar equipada no Colégio Vasco da Gama para treinar 1h30m/2h antes da sua primeira aula na faculdade, que começa às 9h.
À tarde volta ao CVG para os treinos, que decorrem das 17h30m às 19h30m/20h. Às terças e quintas-feiras são dois treinos de natação: um de manhã e outro à tarde. Nos restantes dias da semana, o treino de natação ocupa o horário matinal e à tarde é a vez do treino de ginásio, para reforçar os músculos. No final do dia são quatro a cinco, as horas que a natação ocupa diariamente na vida de Susana. Para além de treinar no CVG, às vezes vai treinar ao Jamor.
De noite torna-se essencial repousar para repor as energias. Subtraindo os treinos, as aulas na faculdade, e as horas necessárias para estudar, que tempo sobra para a vida social? São muitas as vezes que Susana tem de dizer ‘não’ aos amigos, por ter treino no dia a seguir: “É muito difícil conseguir ajustar o meu horário semanal e depois queimá-lo ao fim de semana. Se eu acordar num dia ao meio dia, depois vai desestabilizar a semana toda”, explica Susana.
A palavra chave é “disciplina”, e para a nadadora de alta-competição este termo faz parte da sua vida desde muito cedo. “Já é automático acordar cedo. É uma rotina que já tenho há algum tempo. É difícil dizer que não, e não aproveitar tempo com a família e amigos, mas tem de ser. Não conseguimos ter resultados sem dizer que não a algumas coisas”, reforça Susana.
Em março chegou a Portugal a pandemia da Covid-19 que colocou toda a população em quarentena. O mundo do desporto foi prejudicado e Susana perdeu parte daquilo que a fascina no mundo da natação: não foi a competições, não conheceu pessoas novas, nem passou por novas experiências. Foram três meses sem nadar. Ficar uma semana sem nadar faz com que se comece “a perder a sensibilidade da água” e Susana sentiu-se como “uma pedra a ir ao fundo”.
Contudo, os treinos continuaram fora de água, ou seja, a preparação física não parou. “Fazíamos chamadas de Zoom. Mas não [era] a mesma coisa. É preciso mesmo uma piscina. Não ter aquela rotina é um vazio”, relembra Susana.
As competições foram adiadas ou canceladas e muitos atletas desmotivaram. Com a nova realidade que surgia, tornava-se essencial ter cabeça e manter o foco. “Mesmo estando em casa, tínhamos de continuar com esta rotina de acordar, ir comer e ir fazer a preparação física. Foi difícil mas ainda bem que já passou. Agora andamos a treinar assim um bocadinho sem rumo”, explica a nadadora. Não existe um plano de provas bem definido.
No entanto, Susana sabe que há uma prova que vai acontecer este ano: os Jogos Paralímpicos de Tóquio. “Acho que o governo do Japão vai mesmo criar um sistema para que os atletas consigam estar lá de uma forma segura. Pode não haver público, mas pelo menos os atletas já conseguem estar lá”.
Um sonho, uma meta
Neste momento, o foco nos treinos é maior do que nunca. Susana está a treinar oito vezes por semana, mais três vezes no ginásio. A alimentação é cuidada, e está sempre a ser visionada por alguém. É preciso que ela vá em forma para aquela que vai ser a sua maior realização pessoal.
Em abril de 2019, num campeonato nacional em Coimbra, na prova dos 100 metros livres, Susana conseguiu fazer os mínimos para ir aos Jogos Paralímpicos de Tóquio. “Toda a gente ficou ao rubro. É aquilo que toda a gente sonha no mundo do desporto. Foi aí que percebi que se calhar conseguia fazer um bom percurso na natação”.
Foto: Reação de Susana quando fez os mínimos para os Jogos. Fotografia cedida por Susana
No entanto, fazer os mínimos não é o suficiente. “Depois de fazer os mínimos começamos a contar automaticamente para uma abertura de quotas, ou seja, de vagas, para os atletas”. Só existia uma vaga feminina, mas há duas raparigas com mínimos, o que significa que Susana continua a lutar para ficar melhor posicionada no ranking, ou seja, ter melhores resultados nas provas, e poder concretizar um sonho.
“Aquilo que interessa a nível mediático são as medalhas e os prémios, infelizmente. Não somos ninguém a nível do desporto se não tivermos projeção mediática. É mau porque fazes um mínimo, ficas feliz, mas não chega”
Embora sinta que é um sistema injusto, Susana afirma que este tem de ser feito, porque caso contrário não haveria lotação para todos no evento. Com o adiamento dos Jogos para este ano, Susana conseguiu mais um ano para ajustar aquilo que não dominava tão bem, e treinar intensivamente como se tivesse a certeza de que fosse. Tudo isto com a ajuda física e mental de Nuno Quintanilha, que afirma que Susana é “muito forte a nível psicológico”.
Áudio: Susana Veiga fala sobre Jogos Paralímpicos
Foi em maio deste ano que Susana ficou mais perto de concretizar este sonho. A sua participação no campeonato da Madeira, onde bateu um recorde europeu na prova dos 50 metros livres e um recorde nacional nos 100 metros livres, foi o passaporte final para os Jogos Paralímpicos.
“Esta foi para mim a primeira competição em que senti um pouco mais de pressão em cima de mim. É normal que a partir de uma certa altura as pessoas comecem a querer mais de ti e, liguem em Portugal senti que tinha uma «obrigação» para conseguir estar no melhor possível.”
Agora, tendo a certeza de que vai representar o nosso país no Japão, o próximo passo é tentar obter uma medalha a nível olímpico. Se Susana conseguir, não será a primeira portuguesa a consegui-lo.
Desde 1984 que os portugueses marcam presença neste evento e orgulham o nosso país. Foram já 281 atletas nacionais a participar em 13 modalidades, que trouxeram 25 medalhas de ouro, 31 de prata e 39 de bronze. A nível da natação, foram 9 as medalhas conseguidas.
Gráfico: medalhas portuguesas conquistadas nos Jogos Paralímpicos
No entanto, para além de querer ir até à final dos Jogos e bater o recorde nacional, aquilo que mais entusiasma Susana é a experiência em si.
“A verdadeira medalha e o que me dá mais prazer é poder conhecer novas pessoas e novas realidades”
Um dos grandes desejos de Susana é dar mais reconhecimento à natação, principalmente a nível nacional.
“Sinto que o nosso país não valoriza a natação. O foco é para o futebol e não se vê potencial noutras modalidades, que deveriam ter a mesma projeção mediática”
A maior dificuldade que sente nesta área do atletismo é conseguir que as pessoas percebam que se esforça, e que também quer levar Portugal mais longe.
“Às vezes não há aquela palmadinha nas costas que sabe bem. Existe pelas pessoas que estão em contacto direto comigo, mas a nível da sociedade não há aquele afeto que eu gostava que houvesse. É o grande obstáculo”
Para além disso, a visibilidade dos desportos adaptados também é preocupante, tanto para Susana como para o seu treinador. Susana sente que “as pessoas têm de conhecer o desporto adaptado e perceber que uma pessoa pode fazer aquilo que quiser, independentemente da deficiência que tenha”.
Nuno Quintanilha afirma ainda que quando há publicidade aos campeonatos e quando se promove a imagem dos atletas, tudo é diferente. “Nós temos de vender o nosso desporto. Se vai haver um campeonato da Europa na Madeira, tem de estar espalhado por Lisboa, no Porto, ou no Algarve que vai haver aquele campeonato. Isto tem de existir, se não vamos chegar lá com metade das bancadas vazias”.
No entanto, Nuno ainda sente um problema na sociedade, que “ainda não está totalmente ajustada para aceitar as pessoas com deficiências”. Para ele, estas são pessoas que devem ter exatamente as mesmas hipóteses e apoios do que todos os outros.
Fotografia: Susana na sua primeira representação da seleção – o Europeu em Dublin, 2018. Fotografia cedida por Susana
Segundo Susana, na natação adaptada há uma centena de deficiências diferentes. Ao olhar para o lado, pensa muitas vezes que, comparativamente a outros nadadores deste estilo, não tem qualquer deficiência.
“Eu faço tudo sozinha. Eu ando, corro, conduzo. Há pessoas que não fazem isso, porque estão dependentes e precisam de ajuda”
Ter ficado com a perna paralisada com um ano de idade foi algo atípico. No entanto, Susana gosta de olhar para o lado positivo das coisas. Foi a deficiência que a levou onde está hoje, com a possibilidade de ir aos Jogos Paralímpicos, um sonho na vida de qualquer atleta.
Embora fora de água não consiga fazer a mesma coisa que os outros, dentro de água, para além de exercitar a perna e ganhar massa muscular, sente-se igual a qualquer outro: “Só quando saio da água é que as pessoas veem a deficiência e se questionam”.