Um erro numa notícia distribuída pela agência Lusa foi reproduzido tal e qual por uma série de órgãos de comunicação. Porquê? Como é que acontecem estas coisas? A quem devem atribuir-se as responsabilidades? E de que modos se poderiam, neste domínio, melhorar
algumas práticas profissionais?
Por ocasião do falecimento do grande cartoonista português Vasco, ocorrido no passado dia 11, levantou-se uma interessante polémica jornalística, que dá pano para mangas quanto a certas rotinas profissionais e à imputação de responsabilidades.
Tudo começou com uma notícia distribuída pela agência Lusa, que entretanto foi retomada (ou reproduzida tal e qual) numa série de órgãos de comunicação, mais ou menos nestes termos: Vasco de Castro, conhecido por ser o “desenhador de Moura” morreu esta noite no Hospital Amadora Sintra, com 85 anos, vítima de problemas respiratórios na sequência de várias complicações de saúde, disse à agência Lusa um amigo.
A referência ao “desenhador de Moura” causou estranheza a muita gente, pois Vasco nada tinha a ver com aquela cidade alentejana — as suas raízes estavam todas em Trás-os-Montes (embora tenha nascido acidentalmente no Ribatejo). E mais estranheza causou ao amigo que tinha dado a informação à agência Lusa… O que ele tinha dito era que Vasco não gostava de ser chamado cartoonista, preferia que lhe chamassem “desenhador de humor”. Ora este “desenhador de humor”, mal percebido pelo/a jornalista da Lusa, transformou-se em “desenhador de Moura”… E um conjunto largo de meios de comunicação, não se dando conta do erro nem tendo tido a curiosidade de o esclarecer, lá espalhou aos quatro ventos a notícia da morte do “desenhador de Moura” que era, afinal, apenas um “desenhador de humor”…
Começando pelo princípio, lamenta-se o erro da agência Lusa, até porque todos os seus textos costumam ser lidos por mais de uma pessoa antes de entrarem na linha de distribuição. O lapso só seria detetado se alguém tivesse tido a curiosidade de ir perceber o porquê daquele estranho “de Moura” – até porque, mais adiante na mesmíssima notícia da Lusa, era dito que Vasco tinha nascido acidentalmente em Ferreira do Zêzere (Ribatejo), porque a sua mãe estava lá colocada numa escola, mas logo seguiu para casa dos avós, em Vila Real (Trás-os-Montes), “onde cresceu”. De Alentejo, nada. Mas, aparentemente, ninguém estranhou.
A seguir, também uma série de jornalistas nada estranhou nem cuidou de ir tentar perceber — e a informação recebida da Lusa passou no imediato, tal e qual, para “sites” de jornais, rádios e televisões. E redes sociais, claro: um reputado jornalista da nossa praça escreveu na sua página pessoal um sentido elogio ao “alentejano” que acabava de falecer (e depressa apagou essa referência, dando a entender que ela nunca tinha existido…).
Há culpas? E de quem?
Esta questão do uso de material de agência por parte dos órgãos de comunicação divide opiniões há muito tempo. E há um par de interrogações que podemos colocar:
- Deve ou não ser verificada a informação recebida de uma agência?
- Deve / pode ou não transcrever-se o texto literalmente?
- Deve ou não ‘assinar-se’ o texto como sendo da Lusa?
- Deve / pode ou não alterar-se o texto e passar a ‘assiná-lo’ com nome próprio?
- Um erro da Lusa, quando repetido num jornal, é só responsabilidade da Lusa, ou passa a ser responsabilidade também do jornal?
Vamos, então, passo a passo.
1. Um texto que nos chega da agência Lusa é um texto escrito por um(a) jornalista e editado por um(a) jornalista. É fiável à partida. E, por regra, foi feito seguindo os padrões e as técnicas jornalísticas. Ou seja, está pronto para ser publicado. Ainda assim, pode haver um erro, um lapso, uma distração. E se eu vou publicar aquele texto no ‘meu’ jornal – ou seja, se vou passar a ser corresponsável pela sua difusão pública —, é recomendável que, pelo menos, o leia previamente. Sempre se pode corrigir alguma coisa que seja necessária, algo que tenha escapado na origem. Metê-lo automaticamente na linha (como parece suceder hoje em boa parte do universo online), sem sequer saber do que ele trata e como trata, não parece muito compatível com as boas práticas profissionais.
2. Os textos recebidos da Lusa podem, naturalmente, ser transcritos tal e qual, desde que sejam devidamente identificados. Como disse atrás, são trabalhos noticiosos, da autoria de jornalistas e selecionados de acordo com critérios jornalísticos (ao contrário do que acontece, por exemplo, com “press releases” enviados para os jornais por quem deseja anunciar ou promover eventos ou entidades — e que, esses sim, devem ser tratados apenas como elementos informativos de “background”, que o/a jornalista usará ou não no seu trabalho). Há publicações que preferem alterar um pouco os textos da Lusa, só para não ficarem iguais aos que vão sair noutros jornais. Eu próprio, nos primeiros anos de atividade como jornalista profissional (1980 e seguintes), passei dias inteiros a reescrever textos chegados da Lusa, porque o ‘chefe’ me pedia que o fizesse, para não ver no dia seguinte exatamente a mesma notícia, “ipsis verbis”, no “Jornal de Notícias”, no “O Primeiro de Janeiro”, no “Comércio do Porto”. E lá mudava a ‘entrada’ da notícia – que normalmente até estava muito bem feita —,assim como mais umas quantas frases aqui e ali, só para fazer diferente. Eu não assinava esses textos — mas também não fazia neles qualquer menção à agência Lusa, porque alegadamente o texto já não era literalmente dela… Assim mandava o ‘chefe’ e nós, gente novinha a dar os primeiros passos na profissão, obedecíamos. Como se percebe, esta é uma solução artificial e eticamente duvidosa, apenas destinada a salvar as aparências e a esconder o facto de se fazer tão pouco trabalho original. Mais interessante seria a publicação usar as informações vindas da Lusa, sim, mas complementá-las com elementos de pesquisa autónoma, junto de outras fontes, para fazer trabalho próprio e com valor acrescentado.
Uma dependência antiga
3. e 4. É de elementar justiça e bom senso que os textos oriundos da Lusa sejam identificados (com assinatura no fim ou com alguma referência explícita no meio) como oriundos da Lusa. Em anos passados (e talvez ainda agora?…) havia jornais conhecidos por suprimirem qualquer referência à agência nesses textos, pois usavam tantos com essa proveniência que até dava mau aspeto ver “Lusa” aqui, “Lusa” ali, “Lusa” acolá, “Lusa” por todo o lado… E o trabalho próprio, onde estava ele?… Quando os textos de agência dão origem a notícias que incorporam novo material desenvolvido pelos jornalistas de um dado órgão de comunicação, faz sentido usar uma assinatura do género “Fulano, com Lusa”. Se a incorporação de novos elementos é francamente superior ao que chegou da agência, então parece aceitável que o/a jornalista assine o texto com o seu nome – mas deve sempre, algures no texto, referir que a informação inicial veio da Lusa.
5. Quando as coisas correm menos bem – como no caso de Vasco, o “desenhador de humor” feito acidentalmente “de Moura” —, a tendência natural é culpar quem cometeu o erro inicial: “A responsabilidade é da Lusa, eles é que se enganaram e nos levaram ao engano, nós confiamos na agência …”. Mas nós podemos contrapor também: “E vocês não estranharam nada? Não pensaram em ir saber o porquê daquela menção a Moura? Ou… publicaram sem ler sequer?”. Quando, há 20 ou 30 anos, os textos de agência nos chegavam por telex (esse aparelho quase pré-histórico…) e tínhamos de os copiar/ adaptar através de uma máquina de escrever ou de um computador, não podíamos não ler. Hoje em dia, com tudo a chegar por via informática e a poder ser reencaminhado automaticamente, também por meios digitais, vai muita coisa diretamente para o público sem ser lida sequer. E isso é que é pena. O erro aqui comentado até podia não ser descoberto por ninguém, pois não era dos mais óbvios. Mas quantos mais olhos atentassem naquele texto, mais plausível era que alguém se interrogasse, duvidasse, quisesse ir confirmar e… descobrisse o lapso. E o corrigisse. Nesse sentido, há uma responsabilidade de quem faz originalmente a notícia, mas há igualmente responsabilidade de quem, decidindo publicá-la tal como está, a torna também um pouco sua. Não pode, portanto, sacudir toda a água do capote.
A relação dos órgãos de comunicação com as agências noticiosas tem que se lhe diga. Sempre houve alguma dependência delas, e essa dependência aumenta à medida que diminuem os jornalistas nas redações, que se extinguem os serviços de revisão ou “copy desk”, que aumenta a carga de trabalho e a necessidade de andar depressa, muito depressa, quase sem tempo para parar e pensar. Com isto ficam os jornais, rádios e as televisões cada vez mais iguais, difundindo notícias iguais, tratando de assuntos iguais, publicando até erros iguais. Foi o que aconteceu a um grande número de meios de comunicação portugueses neste caso – mas não a todos, é justo dizer, pois também houve os que fizeram o seu próprio trabalho e não embarcaram no erro. O que mostra que é possível, mesmo que nem sempre seja o caminho mais fácil. Ou mais rápido.
Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.