A propósito de um prémio Pulitzer para Darnella Frazier

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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Já toda a gente deve ter ouvido falar disto. Uma jovem americana, de seu nome Darnella Frazier, recebeu uma “menção especial” dos Prémios Pulitzer – esses prestigiadíssimos galardões que todos os anos distinguem trabalhos jornalísticos de excelência – pelo vídeo que filmou com o seu telemóvel, em 2020, testemunhando o assassinato de George Floyd por um agente da polícia. Foram nove minutos de horror, que rapidamente circularam por todo o mundo via Internet, tendo mais tarde ajudado a fazer prova no tribunal que, entretanto, condenou o polícia pelo crime de homicídio.

A notícia no “site” da CNN começava assim:

New York (CNN Business) – The Pulitzer Prizes recognize some of the year’s most important journalism. This year, someone who isn’t a professional journalist, but whose actions had as much impact as any, is among those being honored.

Chamo aqui o assunto por um motivo específico: aquela jovem, na altura com 17 anos, não era (nem é) jornalista, mas acaba de receber um dos mais notáveis prémios da área do jornalismo. Faz sentido? Todos podemos, afinal, ser jornalistas? Estar no sítio certo à hora certa, e com um telemóvel na mão, chega para se fazer jornalismo?

A “menção especial” atribuída pela organização dos Prémios Pulitzer é justificada pelo facto de a jovem Darnella Frazier ter “gravado corajosamente o assassinato de George Floyd”, fazendo “um vídeo que gerou protestos contra a brutalidade policial por todo o mundo” e que “põe em relevo o papel crucial dos cidadãos na busca dos jornalistas pela verdade e pela justiça”. É, portanto, um prémio para uma cidadã, mas que desempenhou um papel coincidente, ou convergente, com as mais nobres funções de um/a jornalista na sociedade.

O lugar do “jornalista-cidadão”

Não há muitos anos, foi bastante debatida a questão do chamado “jornalista-cidadão”. De modo muito simplificado, podemos dizer que se admitia que qualquer pessoa, agora equipada com meios de captação e difusão de informação (palavras, sons, imagens) à escala global e à distância de um clique, estaria em condições de fazer jornalismo – e, no limite, substituir até, por desnecessários, os profissionais do jornalismo.

Do ponto de vista tecnológico, tudo isto se tornou possível com a generalização de meios de auto-edição fáceis de usar e baratos de comprar (está tudo num simples “smartphone”, um telemóvel inteligente…), a que se somou a banalização da Internet, que nos pôs a todos, em todo o mundo, instantaneamente em contacto direto.

Do ponto de vista teórico, esta novidade também veio a calhar a quantos defendem que o jornalismo deve ser uma profissão ‘aberta’, sem necessidade de formação específica ou de licença legal ou de carteira profissional, pois implica apenas o exercício da cidadania ativa e a prática (que nenhum grupo deve ter em exclusivo) da liberdade de expressão no espaço público.

Esta promessa de alargadíssima democracia participativa da era digital, concretizada como vamos vendo, à nossa volta, na dinâmica imparável (e tão cheia de sinais contraditórios) das redes sociais – ou ‘média sociais’, como preferem chamar-lhe os anglófonos – depressa mostrou que estava a misturar muita coisa que não deve ser misturada. Porque se calhar ninguém ganha com isso – e às tantas até perdemos todos.

Praticar “atos de jornalismo”

Sublinhe-se, desde logo, que fazer jornalismo (ser jornalista) não é apenas fazer umas fotos ou gravar uns vídeos no telemóvel e difundir tudo pelo mundo fora, aproveitando a oportunidade de se estar “no sítio certo no momento certo”. Para mais em exclusivo… Não obstante, fazer isso pode ter, em determinadas circunstâncias, uma força e uma importância que claramente coincidem com os papéis mais nobres do jornalismo, sejam eles de revelação (de algo de interesse público que alguém pretendeu esconder) ou de denúncia (de abusos ou excessos que não devem passar impunes). Foi o que aconteceu com o vídeo gravado por Darnella Frazier. Não fez dela, só por isso, uma jornalista. Mas foi “um ato de jornalismo” que ela praticou, para usar uma expressão cara a Jeff Jarvis, autor de um dos mais antigos e mais estimulantes blogues ligados ao jornalismo, o Buzzmachine. Sendo certo que, como Jarvis gosta de referir, a profusão de meios digitais no nosso bolso faz com que praticamente todos nós tenhamos a oportunidade, ao longo da nossa vida, de praticar algum “ato de jornalismo”. Sem que, só por isso, fiquemos automaticamente jornalistas – e possamos, no limite, substituir os profissionais desse ofício.

Praticar “atos de jornalismo” é, afinal, exercer a cidadania com todos os meios que tenhamos ao nosso alcance. E o jornalismo não se importa – pelo contrário, agradece. Os cidadãos podem, e devem, ser parte dos processos de informação sobre a atualidade, numa lógica de colaboração e complementaridade com os profissionais. Há locais a que o jornalista não chega; há coisas que o jornalista não sabe; há eventos que o jornalista não presenciou; há enganos em que o jornalista incorreu; e tudo isso pode melhorar se / quando cidadãos atentos, disponíveis, interessados pela vida pública, contribuem também para os processos informativos – umas vezes como fontes, outras vezes como co-produtores e parceiros, outras vezes como testemunhas exclusivas de algo que não pode ficar por conhecer.

Entre os amadores e os profissionais

Estudiosos do jornalismo como Stephen Ward ou Lewis Friedland desenvolveram, em anos recentes, e tendo como pano de fundo os novos ambientes mediáticos da era digital, o conceito de “layered journalism” – que podemos traduzir por “jornalismo por níveis” ou
“jornalismo por camadas”. Significa ele que o jornalismo se faz por diferentes mãos e com diferentes graus de envolvimento, havendo lugar a espaços de colaboração entre profissionais e amadores, entre os que se dedicam ao ofício a tempo inteiro e cidadãos interessados apenas em participar na vida pública dentro das suas possibilidades. Uns e outros não são adversários, do género “ninguém se meta neste mundo profissional, que isto é só para quem sabe”; pelo contrário, são (podem ser) aliados valiosos no trabalho comum de conseguir que tenhamos cada vez mais informação completa, séria, aprofundada, independente, daquela que nos permite uma intervenção cívica mais consciente e crítica. Para este propósito comum, é ótimo podermos contar com jornalistas profissionais competentes e empenhados, mas também é ótimo podermos contar com pessoas como Darnella Frazier, que, estando “no sítio certo no momento certo”, não fecham os olhos nem olham para o lado e, pelo contrário, pegam no telemóvel para registar algo que o interesse público justifica.

Estes “atos de jornalismo” podem ser preciosos e merecer plenamente, como neste caso, um prémio especial sob a égide de Joseph Pulitzer. É bom que, hoje em dia, com as ferramentas disponíveis ao nosso alcance, qualquer um(a) de nós possa cada vez mais praticar tais atos e participar ativamente no esforço comum de difusão de mais e melhor informação no espaço público. Não faltam por aí bons exemplos, em “sites” pessoais, em blogues, em páginas de Facebook, Instagram ou Twitter, em interações com os média institucionais. No entanto, também convém reafirmar que o jornalismo é mais, muito mais, do que “atos de jornalismo” esparsos, contingentes, praticados por cidadãos se e quando as circunstâncias lhes surgem à frente. Há muita coisa que acontece escondida. Há muita coisa que nem sequer “acontece”, mas que se vai desenvolvendo pela calada. Há muito evento que não se consegue fotografar ou filmar ou gravar. Há muito processo que corre por debaixo da espuma dos dias e que precisa de ser investigado. Há muita gente que vive longe, isolada, esquecida, e que também merece ser dada a conhecer ou ter alguma voz nos média, sejam eles ‘tradicionais’ ou ‘sociais’.

E tudo isto não pode ficar apenas à mercê de acasos ou coincidências, de haver alguém que “esteja lá” no momento e possa registar a coisa. Não, não chega. O jornalismo não se pode bastar com ser reativo face a algo que se passa à sua frente; tem de ser proactivo, tem de ir ao encontro das coisas, tem de ir à procura dos assuntos que importam ao público, tem de descobrir o que é relevante, tem de investigar o que condiciona as nossas vidas, tem de tomar a iniciativa, tem de preencher este nosso direito tão essencial que é o direito à informação. E para isso são também precisas pessoas que se dediquem ao ofício a tempo inteiro, que recebam uma formação adequada para fazer bem este trabalho, que se comprometam com princípios e valores de clara exigência ética, que trabalhem em equipa e assim se vão responsabilizando mutuamente pelo que fazem, que nos assegurem este autêntico serviço público mesmo quando trabalham em empresas privadas. Ou seja: são
precisos jornalistas profissionais.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho