Seja no desporto ou nos palcos, sente-se a adrenalina nos momentos de maior êxtase. O comportamento aditivo liga-se sobretudo ao desafio do limite e à tomada de riscos. A adição mistura-se com a adrenalina, mas pode esta sensação ser um vício?

Jacqueline Valente é atleta da Red Bull, pratica salto de penhasco. Em 2014, participou na primeira competição feminina da modalidade profissional de salto de penhasco. Nas competições, o público torna a sensação de adrenalina ainda mais forte. “Quando eles gritam, quando eles vibram, quando eles aplaudem”, o sentimento alcança o atleta.

“Os momentos antes na plataforma são cruciais, sente-se uma mistura de emoções.” – jacqueline valente

Ao aterrizar na água é acompanhada pelo sentimento de satisfação. Praticante de um desporto vicioso, está “sempre em busca de adrenalina e coisas novas”. Quando pensa num futuro após a atual carreira, não lhe surgem ideias. Depois de anos a competir, sente que será difícil “encontrar uma coisa que me possa dar tanta adrenalina quanto as competições”. O dia-a-dia transforma-se em monotonia.  

A sua última competição foi em setembro de 2019, em Bilbau. Viu um calendário promissor com mais de dez datas desaparecer devido à pandemia. Desde então, não pode treinar ou contactar com o desporto. Sendo a única atleta brasileira a competir, sabe que em outras partes do mundo algumas atletas já estão a treinar. “Sinto falta da adrenalina, da sensação de liberdade que tenho, do que gosto de fazer.” O que mais a afeta é a ausência de uma data de regresso aos saltos. Receia que as suas condições físicas não sejam as melhores e o tempo que pode demorar até atingir a intensidade de treino anterior à pandemia.

Foto: Dean Treml / Red Bull Content Pool

“Apesar de os vícios serem postos no mesmo balde, os mecanismos de funcionamento e as razões por trás do comportamento aditivo têm razões e funções diferentes, mesmo que com um padrão comum.” – Inês Loureiro

A adrenalina surgiu para nos protegermos. Substituindo o mecanismo de lutar ou fugir, diminui a sensibilidade à dor e aumenta a performance humana. Inês Loureiro tem 26 anos e, desde que começou o seu percurso enquanto psicóloga clínica, tem trabalhado no campo das adições químico-comportamentais. 

A adição não vem descrita como uma patologia nos manuais de psicologia. A patologia está ligada a padrões repetitivos e compulsivos – comportamentos, pensamentos e padrões de emoção – que causam danos a quem os pratica, ultrapassando o controle do indivíduo. Este mecanismo acaba por estar aliado a outro tipo de perturbações associadas como stress pós-traumático, ansiedade ou hiperatividade. Na ausência de soluções, os vícios surgem como um mecanismo que ajuda a ultrapassar tais dificuldades, uma vez que trazem, muitas vezes, uma gratificação instantânea.

“O medo põe, de certa forma, um limite. porque eu acho que ele deve ser imposto, não podemos sair e fazer tudo pela sensação de adrenalina.” – lara malta

Lara Malta decidiu pular de bungee jumping e fazer paraquedismo aos 17 anos, em 2020. Contou com um guia presente em ambas as situações, até por não ter preparação que a permita saltar sozinha. Sentiu o medo antes do salto, o que, para si, é a melhor parte de fazer aquilo de que gosta. A vontade de repetir é limitada pelo medo. Para este autocontrole, pondera quais os perigos inerentes à prática da atividade.

Além de estudante de Publicidade e Marketing, é jogadora profissional de rugby. Um desporto que pode ser perigoso, mas que não a preocupa: além da presença da adrenalina, tem a capacidade física e o treino que a impede de ultrapassar limites. Ao entrar em campo, o público desaparece: “Sou eu e as jogadoras que lá estão, quase parece que não há ninguém a assistir.”

Durante o confinamento, esteve impedida de treinar ou competir. A ausência do desporto é marcada por um vazio que a faz sentir como se precisasse de uma pitada de emoção, de vida e euforia. Limitada às paredes da sua casa, tem um sentimento aflitivo e intenso em que se questiona quando vai poder voltar a campo e ter outro momento de adrenalina.

Reconhecendo que “algo de aditivo na adrenalina”, a psicóloga Inês Loureiro não sabe até que ponto a mesma pode ser reconhecida enquanto um vício. Reconhece nesta busca pela adrenalina padrões semelhantes aos das adições, como o comportamento de risco, muitas vezes premeditado. O rush causado pela adrenalina – um aumento de energia que proporciona algum tipo de prazer – pode ser encarado de uma forma positiva. Como com qualquer outra adição, o diagnóstico reside nos efeitos negativos causados, sejam eles ao nível físico, social, familiar ou profissional.

O Ricardo Infante da Câmara é estudante de teatro na Escola Superior de Teatro e Cinema. Começou nos palcos aos 10 anos, em peças escolares. Com o tempo, atuar passou a ganhar espaço na sua vida e decidiu que queria fazê-lo ao nível profissional.

Descreve a sensação de estar num palco perante a plateia como viciante. Nos momentos em que está impedido de praticar, por vezes sente a carência desta emoção de forma mais intensa: “é um pico gigantesco de adrenalina e assim que acontece é impressionante”. Depois do primeiro confinamento, teve oportunidade de voltar aos palcos em julho. Com a preparação via zoom, só se cruzou com os restantes artistas no ensaio geral. Fazer um monólogo depois de meses sem pisar o palco era inimaginável. “Confesso que me fez alguma confusão, porque eu olhei e pensei: ‘Uau estão aqui pessoas. Há quanto tempo é que não sentia isto’.”  

“É um sentimento que não é humanamente explicável.” – Ricardo Câmara

Ricardo Câmara, momentos antes de entrar em palco. Fotografia cedida pelo mesmo.

Entre quatro paredes, começou a gravar self-tapes, que apesar de terem menos impacto permitem sentir a adrenalina da atuação. A ausência destes momentos é sentida na pele com a incerteza de como será o retorno: “Sinto que quando acontecer, não sei se vou estar preparado para ele. Porque é algo que eu já não sinto muito intensamente há algum tempo.”

“Não há mais nada que tenha aquela intensidade, que tenha aquela emoção e parece que a vida fica muito cinzenta e aborrecida.” – Inês Loureiro

A longo prazo, a adição torna-se uma fonte de prazer que limita as emoções sentidas nas restantes atividades do dia a dia. A prática de desportos radicais, de forma muito frequente ou experiente, pode fazer com que, ao serem impedidos de praticar essas actividades, tenham sintomas de abstinência semelhantes aos das adições. Entre eles o aparecimento de cravings, um desejo intenso e incontrolável, e à perda de prazer na prática de outras atividades.

Gonçalo Moreira é músico e cofundador da discográfica BAIT, uma editora e agência de promoção e de produção de eventos.  Os sentimentos de adrenalina provados em palco variam consoante a banda e o momento em que a mesma se encontra. O “bichinho de fazer bandas” surge no quinto ano. Aos catorze, com The Pijama Soldiers, tinha a responsabilidade, “assustadora”, de cantar e conhecer o público pela banda.

“SOU MEMBRO PERMANENTE DO BANCO DE SUPLENTES DAS BANDAS DOS MEUS AMIGOS.” – GONÇALO MOREIRA

Gonçalo Moreira em palco em dezembro de 2019. Fotografia de Mafalda Couto

Com o avançar do tempo o “nervoso miudinho” diminuiu, mas a adrenalina e a emoção ainda eram desmedidas: “A vontade de subir ao palco, tocar os dois ou três primeiros acordes e estar na zona de conforto. Era uma descarga de energia fantástica.” Depois de um ano sem subir ao palco encontrou uma oportunidade, entre confinamentos, de tocar com Rossana, artista de jazz da BAIT. No entanto, a adrenalina não é a mesma. Estar em casa indefinidamente e ver concertos em streaming ou seguindo todas as normas da DGS deixam um sentimento de falta.

Gonçalo anseia pelos concertos sem restrições. Nessa altura, a vontade de participar vai ser tão grande que o entusiasmo será coletivo. “Ter uma sala que está a ansiar pela música ao vivo e pela troca de energia entre a banda e o público vai ser um êxtase brutal. Um grito de liberdade, de vitória.”