A evocação da tragédia de Entre-os-Rios, ocorrida há 20 anos, despertou a memória de uma série de discussões acaloradas sobre a cobertura jornalística daquele acidente que causou a morte de 56 pessoas – e das quais, recorde-se, só foram recuperados 23 corpos. Muita da polémica andou à volta do modo como as estações de televisão acompanharam os acontecimentos, fazendo infindáveis transmissões em direto de tudo e mais alguma coisa, mesmo quando parecia nada haver de novo para dizer ou mostrar. Mas nenhum canal queria ficar atrás do outro, nenhum queria desligar deixando o outro sozinho no terreno… Foi por isso que RTP, SIC e TVI acabaram até por esboçar na altura uma espécie de “pacto de auto- regulação”, afirmando que se comprometiam a ter alguma contenção e sentido de medida… desde que os concorrentes fizessem o mesmo.
Por isso, o Conselho Deontológico dos jornalistas, numa posição muito crítica sobre os excessos cometidos em Entre-os-Rios, comentou que aquilo não passava de “uma proposta de pacto de não agressão comercial – com a ética jornalística como refém”.
Para além das polémicas mais centradas na televisão, um outro ponto relevante emergiu nos debates, e esse especificamente a propósito do trabalho individual dos jornalistas que por ali estiveram em reportagem: o modo como se lidou com a dor e o sofrimento das dezenas de pessoas que, de modo mais ou menos próximo, foram tocadas pela tragédia. Ficou até célebre, por más razões, a expressão “como é que se sente?”, utilizada por vários profissionais, ao abordarem pessoas cujos familiares tinham morrido no desastre, procurando recolher os seus depoimentos, tantas vezes “a quente” e “em direto para…”.
Chegar ao pé de uma mãe que acaba de perder um filho, ou ao pé de um jovem que acaba de perder o pai, colocar-lhe à frente um microfone ou uma câmara de filmar e perguntar-lhe “como é que se sente” é qualquer coisa de… de… de… complicado! Não é propriamente uma pergunta que esteja à espera de uma resposta que nos elucide sobre o que quer que seja. Todos sabemos como se sente alguém num momento tão dramático. E que é que sobre isso se pode dizer, então? Que é que se pode esperar que a pessoa diga? No fundo, parece que se está apenas a expor a sua dor, quase a obrigá-la a pôr essa dor em palavras, num momento em que as palavras dificilmente saem, e mostrando-a assim aos olhos de toda a gente, frágil, triste, quantas vezes a chorar ou até a soluçar. E para quê? Com que propósito em termos informativos? Com que – e cá está o ponto-chave – interesse público?
Sublinhe-se que este não é um assunto nada fácil, porque não é linear, não é “a preto e branco”, não é óbvio. Longe disso. Há um ponto de equilíbrio que é necessário encontrar neste tipo de reportagens.
Por um lado, é absolutamente inaceitável a exploração sensacionalista da dor e do sofrimento de alguém, quer porque configura, as mais das vezes, uma invasão da sua privacidade e um desrespeito do seu direito à imagem, quer porque atropela princípios éticos básicos e normas deontológicas essenciais. Pegar em imagens de pessoas devastadas pela dor e transmiti-las repetidamente durante horas a fio, como fazem certas televisões, numa exploração gratuita de emoções e sentimentos, chega a ser obsceno.
Por outro lado, uma leitura demasiado apressada da necessidade de uma cobertura jornalística objetiva e distanciada pode retirar à reportagem o seu lado humano, a sua empatia, a sua sensibilidade, transformando tudo em relatos mecânicos, frios, despojados de qualquer ponta de – lá está – emoção.
Ouvi, há muitos anos, o reputado professor Mário Mesquita comentar, a propósito deste tema, que no trabalho jornalístico “não é possível separar razão e emoção, mas é possível combiná-las em diferentes proporções”. Retomando este mesmo assunto num excelente texto publicado no Le Monde Diplomatique e intitulado “Rumos do jornalismo na era da hipérbole”, onde falava precisamente do desastre de Entre-os-Rios, escrevia Mário Mesquita: “O distanciamento jornalístico não se baseia numa inviável separação entre o emocional e o racional, nem na construção de um perfil de jornalista glacial e impenetrável. (…) Distanciamento tão pouco significa ausência de emoções, mas autocontrole e autonomia.”
Se há situações de dor, se há pessoas em sofrimento, é claro que ao jornalista compete também transmitir isso. A emoção não fica de lado, só pelo receio de se estar a fazer uma desnecessária espectacularização do drama. Não é apenas pelo esforço da razão que informamos sobre estas situações de forte carga emocional. Contrariamente ao que ironizava Chico Buarque numa conhecida canção, é importante que “a dor da gente” saia no jornal, porque é de gente inteira que se trata, de homens e mulheres de carne e osso, de pensamento e sentimento, de razão e emoção. A questão é como fazê-lo… O desafio é encontrar o ponto de equilíbrio, a proporção adequada, o pudor que se impõe nestas situações que tanto nos mexem por dentro. O que se pergunta, o que se mostra, o que se resguarda, o que se deixa apenas sugerir ou subentender, é o grande desafio de qualquer jornalista em casos com este impacto.
Um desafio que pode implicar dizer “não” quando da chefia lhe pedem que faça isto ou aquilo. Um desafio que pode implicar parar a câmara ou desligar o gravador quando se percebe que se está a entrar onde não se devia. Um desafio que pode, pura e simplesmente, obrigar a gritar: “Já chega!”
E é a/o jornalista que tem a obrigação de perceber isto, pois as pessoas que estão imersas na tragédia e na dor não são, muitas vezes, capazes de ajuizar com clareza e autonomia. Por isso custa ouvir alguém dizer que só transmitiu isto ou aquilo porque a pessoa autorizou… E a pessoa estaria em condições mínimas para autorizar o que quer que fosse? Há dois pontos muito importantes (e muito esquecidos) do Código Deontológico dos Jornalistas que se aplicam a estas situações: o ponto 4, que diz que o jornalista deve “proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja”, e o ponto 10, que diz que o jornalista “obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade, dignidade e responsabilidade das pessoas envolvidas.” Ter estes cuidados é uma clara responsabilidade dos jornalistas, pois as pessoas não estarão, as mais das vezes, em condições de o fazer de modo efetivamente livre e ponderado. Termino com uma outra citação do texto de Mário Mesquita: “Os jornalistas não têm de abdicar da dimensão afectiva. Basta que tenham presente que a especificidade do jornalismo, em face de outras formas de comunicação, reside no objectivo de se constituir (…) numa forma de conhecimento, situada algures entre o senso comum e o saber científico. Para atingir esse objectivo será necessário encontrar pontos de equilíbrio entre afectividade e racionalidade, relação e conteúdo, comunicação e informação”.
(P.S. O trabalho “A queda da ponte de Entre-os-Rios – Exibição em directo da dor e do luto”, da autoria de Sandra Marinho, e citado acima no texto, é parte de uma coletânea mais vasta, publicada em 2007 por um conjunto de investigadores do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho, intitulada “Casos em que o jornalismo foi notícia” . Está disponível ‘on-line’ para quem queira).
Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.