Joana Martins criou o podcast do #SÓQNÃO quando as gravações da segunda temporada do programa homónimo foram adiadas devido à pandemia de covid-19. Os protestos anti-racistas de maio de 2020 foram o mote para falar sobre o preconceito e a discriminação, que exclui determinados grupos da sociedade.

Joana Martins tem 33 anos. Licenciou-se em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa e estagiou em jornalismo, na SIC, mas depressa se dececionou porque sentia que as notícias eram tratadas de forma muito superficial. Procurou novos rumos: tirou um curso de cinema e colaborou na produção de alguns programas culturais.

Um dia entregou o currículo na RTP e foi aceite. Começou a escrever sinopses para a programação do serviço público de televisão. Contudo, era tão rápida no seu trabalho que a convidaram a integrar o digital da estação.

Desde então, produziu conteúdo online para diversos programas de entretenimento do canal, de entre os quais se destaca o Festival da Canção, com o qual colabora até hoje. Joana derivou do jornalismo, mas não se sentia totalmente realizada no entretenimento: “entras um bocado em loop, sempre a fazer as mesmas coisas”, comenta. Foi assim que lhe surgiu a ideia de criar um projeto mais “meaningful”, que combinasse a informação com o entretenimento. Propôs à RTP um programa que funcionasse exclusivamente online. Recebeu luz verde, e assim nasceu o #SÓQNÃO.

“Chama-se #SÓQNÃO. Assim com maiúsculas, porque já chega de andarmos escondidos dentro dos preconceitos dos outros.”

Manifestação do preconceito

Joana sempre quis ser jornalista e “fazer histórias de fundo”. Sente que, nos meios tradicionais, a mistura entre entretenimento e histórias pessoais faz com que a mensagem transmitida se torne confusa. As pessoas que são discriminadas poderiam servir de propósito para discutir questões sociais importantes, mas são mantidas nas margens da sociedade, como vítimas. O #SÓQNÃO procura contrariar esta ótica, destacando a força com que estes indivíduos enfrentam o preconceito.

Os depoimentos na primeira pessoa contam histórias de superação e aceitação de traços que são socialmente vistos como defeitos. Expor vivamente a discriminação de minorias – etnia, identidade de género, sexualidade, incapacidade motora, doença mental ou modos de vida – converte o #SÓQNÃO em sinónimo da sua principal bandeira: o anti-preconceito.

Em junho de 2020 o programa completou um ano. A segunda temporada ia entrar em gravações, mas estas foram adiadas devido à pandemia de covid-19. Enquanto isso, ressurgia a questão do racismo nos Estados Unidos, com repercussões mundiais. Joana passa muito tempo a refletir sobre os temas em que trabalha, por isso sentiu-se obrigada a falar sobre o assunto. Pediu à sua coordenadora na RTP para usar a marca do #SÓQNÃO e gravou o primeiro episódio do podcast.


O primeiro episódio fala sobre o assassinato de George Floyd e o movimento Black Lives Matter.

Um podcast inclusivo

O objetivo do #SÓQNÃO é mostrar que todas as pessoas devem pertencer ao mesmo mundo. Joana menciona os algoritmos das redes sociais dizendo que “tal como (eles) filtram a nossa visão do mundo, também nós tendemos a afunilar as nossas crenças”. Tudo o que foge à norma é incontrolável e gera medo, ou então a convicção de que os problemas não existem. Contar diferentes histórias de vida permite às pessoas compreenderem outras realidades; permite-lhes perceberem que os seus preconceitos podem condicionar a vida dos outros.

Áudio: “Eu tenho orgulho em não passar despercebida, e em não ser comum.”

O #SÓQNÃO apela assim à inclusão, que não é sinónimo de tolerância. Joana salienta esta comparação afirmando que “quando és tolerante, não aceitas bem os outros.” A tolerância apenas gera uma condescendência relativamente às outras pessoas.

A comunidade do programa é heterogénea, mas muito inclusiva. As redes sociais são um ponto essencial para discutir os temas que o #SÓQNÃO aborda e responder às questões que daí surgem. É através do contacto com o público que Joana se permite melhorar a forma como desenvolve cada história. “Quando fazemos coisas que depois se tornam públicas, temos de ouvir quem nos acompanha”, refere.

“Tudo na minha vida tem um bocado de amarelo.” – Joana Martins/Instagram
“Tudo na minha vida tem um bocado de amarelo.” – Joana Martins/Instagram

Mudanças e progresso

Inicialmente, o podcast do #SÓQNÃO era gravado com poucos recursos. Um microfone bastava para gravar o som. Mais tarde a qualidade melhorou: ainda com as contingências da pandemia, Joana passou a ir aos estúdios da RTP de 15 em 15 dias para produzir o programa e gravar as locuções necessárias.

Áudio: “Não vale a pena estarmos à espera dos melhores meios técnicos.”

Numa primeira fase, cada episódio do podcast era dedicado à análise de um tópico particular. O processo de produção, segundo Joana, é trabalhoso. Exige pesquisa e estudo prévio, mas principalmente uma vertente crítica, que na verdade acaba por não a preocupar: “não tenho carteira de jornalista, por isso posso dar a minha opinião sobre as coisas”.

Com o lançamento da segunda temporada do #SÓQNÃO na RTP Play, também o podcast acolheu as novas histórias do programa. Mas os dois formatos não se repetem. O podcast serve como “o segundo caminho para quando as pessoas quiserem saber mais sobre certos temas em particular”. Pegando nas histórias individuais, procura desenvolver os temas envolventes num contexto mais alargado.

Capas dos episódios da primeira fase do podcast – Joana Martins/Spotify.

A ideia de integrar o podcast nos meios mainstream seria interessante, porém improvável. Joana considera a rádio um espaço livre, mas recorda uma proposta de adaptação do programa para a televisão. Em causa estaria uma edição intensiva que desvirtuaria a essência do #SÓQNÃO, e não é isso que se pretende. As pessoas que sofrem de preconceito são obrigadas a ouvir aquilo que não querem. Cortar-lhes a voz e esconder que elas existem “seria perpetuar ainda mais o preconceito e o ódio”. Por isso, Joana conclui que “na internet estamos bem”.

Um título controverso

Em setembro de 2020, Joana inscreveu o #SÓQNÃO no Podes, um festival dedicado aos podcasts portugueses. Uma amiga incentivou-a, e assim poderia conhecer outros participantes que ainda não conhecia pessoalmente. Os resultados saíram no dia 8 de novembro, e o #SÓQNÃO ganhou um prémio.

Festival Podes/Público

O título “melhor podcast sem homens cis brancos heterossexuais” pairou em controvérsia. Segundo o jornalista Ruben Martins, membro da organização do festival, “o nome não foi consensual”. Grande parte dos podcasters portugueses ainda são homens brancos cisgénero e heterossexuais, por isso a equipa decidiu criar um prémio que distinguisse os produtores que não se inserissem nessa maioria. No entanto, a mensagem transmitida foi mal interpretada.

Joana partilha desta ideia, e foi isso que tentou dizer quando recebeu o prémio. Compreende que a intenção da organização é boa, mas “tentando incluir, exclui”. Premiar um podcast com base na pessoa que o produz, e não no seu conteúdo, é perpetuar a segregação que se pretende combater.

Áudio: “Se isto é um festival de podcasts, o podcast tem de ganhar pelo seu conteúdo.”

O futuro à vista

“Os podcasts estão na moda”, afirma Ruben Martins, que investiga este novo fenómeno. A crescente acessibilidade tecnológica permitiu que cada vez mais curiosos pudessem produzir os seus próprios conteúdos com poucos recursos.

Em 2020, com a pandemia de covid-19, o mundo foi obrigado a refugiar-se em casa. O consumo e a produção de conteúdos online aumentaram significativamente. No seu artigo “Podcasts em quarentena: uma moda passageira”, o investigador verifica um crescimento pontual na criação de podcasts em março do ano passado, no início do confinamento. Porém, poucos mantiveram a atividade. Ruben destaca a falta de conteúdo ou a pouca visibilidade como principais fatores que levaram muitos produtores a desistirem dos seus projetos.

O  primeiro confinamento terminou em maio, mas as restrições permaneceram. A produção do #SÓQNÃO continuava suspensa e Joana precisava de uma plataforma para falar sobre os temas do programa. Escolheu o formato de podcast porque considera prático, mas salienta a falta de condições técnicas. Ainda assim, persistiu. Os episódios gravados foram bem recebidos, o que permitiu a continuidade do projeto. Entretanto a nova temporada do programa voltou. As entrevistas foram adaptadas e incluídas no podcast, permitindo-lhe manter-se no ar até ao final de 2020.

Para este ano, Joana pretende regressar à análise dos assuntos da atualidade. Teme que os vários projetos que tem em mãos atrasem o processo, mas acredita que é capaz de cumprir a promessa. Está sempre à procura de novas histórias, por isso admite: “o #SÓQNÃO ainda tem pano para mangas!”