O que custa – e o que vale – uma reportagem

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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Um precioso Manual de Reportagem acaba de ser publicado por iniciativa deste nosso REC – Repórteres em Construção, tendo como organizadores Pedro Coelho, Ana Isabel Reis e Luís Bonixe, e como autores quase meia centena de jornalistas, professores e investigadores. A outra boa notícia é que se trata de uma obra de acesso livre e gratuito, à distância de um clique.

Referir a reportagem como o “género nobre” do jornalismo é quase um lugar comum – mas nem por isso menos verdadeiro. Pode dizer-se que todo o jornalista ambiciona, mais que tudo, ser repórter. Quem alguma vez na vida desejou fazer carreira no jornalismo, olhou sempre para a vida agitada de profissionais repartidos aí pelo mundo fora, frequentemente em lugares de perigo ou de incerteza, como modelos inspiradores de um trabalho fascinante. Em boa verdade, antes de chegar “lá”, ninguém se imagina neste ofício a passar horas e horas, dias e dias, sentado/a a uma secretária e fechado/a numa redação, escrevendo a partir do que lê ou ouve à distância, e não a partir do que vê e ouve e sente no próprio local onde acontecem as coisas. Infelizmente, este acaba por ser o destino quase inexorável de muitos profissionais, compelidos àquilo a que se chama “jornalismo sentado”, e que um conjunto de circunstâncias sociais, culturais, económicas tem agravado nos últimos tempos. Então agora com a pandemia e os confinamentos forçados, é o que se vê…

Mas não é só para os jornalistas que a reportagem constitui um género galvanizador. Também leitores, ouvintes e espectadores conhecem bem o prazer enorme (em termos racionais e em termos sensoriais, se assim se pode falar…) que é descobrir uma boa reportagem – bem escrita, bem organizada, bem gravada, bem editada – no seu jornal preferido, no “site” do costume, na rádio quotidiana ou na televisão de primeira escolha. Lê-la, vê-la, ouvi-la, sorvê-la, aprender com ela da vida e do mundo, fruir com prazer o que lá se diz e mostra, e como se diz e mostra… Mas é um gosto raro, repito.

E o que é, então, uma reportagem? O manual agora publicado fala disso muito e bem, sobretudo pelas vozes de Adelino Gomes e de Jacinto Godinho. E mostra como não é fácil definir “reportagem”. Nos muitos anos que levo de professor de Jornalismo, uma das coisas mais difíceis com que sempre me deparei foi, precisamente, tentar explicar aos estudantes o que é uma reportagem, qual a sua especificidade, quais as suas marcas distintivas, quais os seus desafios. E frequentemente a conversa na sala de aula ia à volta, para ver se a coisa se percebia melhor: olhava-se não para o que é, mas para o que não é reportagem, mesmo quando há muita gente a chamar-lhe assim.

O nome deste género jornalístico está banalizado, usa-se a propósito e a despropósito, tudo o que seja mais do que uma notícia breve já parece uma “reportagem”. Pega-se num comunicado de gabinete ministerial, fazem-se dois telefonemas, busca-se um texto de enquadramento na Internet, faz-se uma ‘entrada’ sugestiva e… cá está uma ‘reportagem’. Ouve-se uma notícia na televisão, procura-se o que diz outra estação, fazem-se dois telefonemas e manda-se um mail a um especialista, recolhem-se mais dois depoimentos e… temos ‘reportagem’. Recolhem-se os números de um problema num hospital, fala-se a uma médica e a um enfermeiro, telefona-se ao familiar de uma pessoa lá internada, pesquisa-se no INE uma estatística rápida e… ‘reportagem’ a sair.

Estes são exemplos do que não é uma reportagem, mesmo que lhe chamem assim. Atenção que isto não significa que sejam maus trabalhos de jornalismo. De modo nenhum. Muitos deles podem ser excelentes peças informativas, com pesquisa de dados significativos, apresentação de opiniões contrastantes, trabalho de enquadramento do tema, tudo contribuindo para nos ajudar verdadeiramente a saber o que se passa no mundo, como se passa, por que se passa, que sentido tem. Ou seja, jornalismo. Mas chamemos-lhe o nome correto: notícia, artigo, peça, ‘inquérito’ (o género que em francês se chama “enquête” dava tanto jeito ser traduzido para português…), mas não reportagem. Falta àqueles trabalhos qualquer coisa para serem reportagens. Falta-lhes, basicamente, sair da redação, ir ao local (e ir com tempo…), ver e ouvir as pessoas cara a cara, percecionar e entender o que envolve a situação, ‘apanhar’ o ambiente com a ajuda dos cinco sentidos, tudo isso. E depois, deixadas as coisas a assentar e a maturar cá dentro, mais uma vez com tempo, encontrar o engenho e a arte de comunicar bem ao público.

Descontando o lado caricatural dos exemplos rápidos que acima dei, temos ali três pontos em comum: foi tudo depressa, foi tudo à distância, foi tudo apenas a falar. Ora, infelizmente, cada vez mais as redações de todos os meios de comunicação, grandes ou pequenos, locais ou nacionais, escritos ou audiovisuais, acabam por conduzir quase todo o trabalho jornalístico a este beco estreito e curto: que o trabalho se faça depressa, sem sair da secretária, e usando apenas um telefone e um computador com acesso à net. A gente é tão pouca e tanto o que há a fazer, que não pode ser de outro modo. Ir para a rua e passar lá uma tarde inteira, gastando tempo e dinheiro em transportes, para depois fazer uma pequena reportagem de 4.000 caracteres, é um desperdício na famosa “relação custo-benefício” lida em modo de vulgata. Não compensa. E então se for necessário andar por fora dois ou três dias, para fazer uma média ou grande reportagem! O que isso custa em tempo e dinheiro!…

É (também) por tudo isto que o “género nobre” do jornalismo, mesmo sendo nobre, se vem tornando raro. Porque não se faz reportagem sem tempo. Não se faz reportagem sem “ir lá”. Não se faz reportagem só no quarto de hotel. Não se faz reportagem só ao telefone. Não se faz reportagem só por e-mail. Não se faz reportagem só a ouvir. Fazem-se muitos outros trabalhos no campo do jornalismo, e muitos muito bons, mas não reportagem. Ora há certas coisas do mundo que só verdadeiramente conseguimos apreender e compreender através de uma boa reportagem. Não teremos todos já passado por essa experiência, como leitores, ouvintes ou espectadores?…

De tudo isto, e muito mais, e muito melhor, fala o Manual de Reportagem agora publicado pelo REC. É uma leitura que se recomenda vivamente e que se faz com enorme gosto, permitindo-nos aprender quer com os textos de excelentes estudiosos destes temas, quer com os relatos vividos de tantos e tão bons jornalistas que se associaram ao projeto. É um enorme ganho de tempo, acreditem.

Uma nota final: o REC tem a sorte de não estar demasiado condicionado pela pressão do tempo ou pelos apertos empresariais para pensar e desenvolver o seu trabalho. E por aqui temos visto muitos notáveis exemplos de reportagem. É ótimo que se possa ir aproveitando estas oportunidades, mantendo vivo o alfobre de projetos e vontades que podem depois ser levados por estes e estas “repórteres em construção” para os sítios onde desenvolverão as suas carreiras profissionais. O esforço vale a pena – e os públicos, em nome dos quais fala o provedor do REC, agradecem.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.