A 6 de junho de 1966, cerca de 40 militares embarcam rumo à Guiné, no navio Manuel Alfredo. No destino encontram cheias constantes, vegetação densa e dificuldade em resistir aos ataques dos inimigos. O cenário é de guerra.
Fernando José arrasta a cadeira. Senta-se na mesa verde, onde agora os netos desenham. As mãos enrugadas deambulam por entre as fotografias. É através delas que o passado a preto e branco toca o presente colorido. A 23 de janeiro de 2021 comemoram-se 58 anos do início da guerra de independência da Guiné.
Fernando José olha para o álbum de fotografias e recorda a chegada à Guiné, “perto da meia-noite” do dia 6 de junho de 1966. Permaneceu no quartel durante três semanas e rumou a Gadamael Porto, onde viria a ficar oito meses. Foi nesta casa branca que permaneceu grande parte do tempo. Na parede podia ler-se “Pelotão dos Solitários”, no interior estavam algumas camaratas dispostas em linha reta. Aí, Fernando viveu com mais sete companheiros.
“A Guerra da Guiné foi um conflito ingrato para os portugueses”, refere Pedro Aires de Oliveira, especialista em Guerra Colonial. Os militares não estavam preparados para a situação de guerra e o denso território contava “apenas com 15 quilómetros de estrada alcatroada”, segundo as contas de Fernando José. Na primeira noite, o calor e os mosquitos causaram, desde logo, um imenso desconforto.
Fernando José acordava de manhã com ordens para vestir o fardamento, aquele que preenchera grande parte das duas malas que levara. Ao final do dia “tomava banho no rio, porque tinha água doce e, por vezes, como a água vinha barrenta, usávamos esta estrutura para a filtrar”, recorda.
Fernando José vira a página do álbum e dá de caras com algumas fotografias com a população local. Pedro Oliveira afirma que “parte da população tirava partido da presença dos militares portugueses, das necessidades que um exército em campanha requeria, eles vendiam produtos à administração…desempenhavam tarefas e tinham empregos remunerados e sentiam que tinham algo a ganhar com a situação colonial”, mas Fernando presenciou também o oposto.
O ex-militar confirma como também ele contribuiu para a economia local. Comprava tabaco, algo que continuou a fazer nos anos seguintes. Hoje, com 76 anos, já não fuma, mas leva desses tempos uma grande lição.
“Comecei a fumar lá. Se não tivesse dinheiro, nessa altura tinha-me sido benéfico”, relata Fernando José, para logo de seguida questionar: “O que é que interessa ter dinheiro se não tens para comprar ou se o que tens para comprar só faz mal à tua saúde?”
A bala é a única coisa que resta para além das fotografias. Assemelha-se a um lápis dourado de 5 centímetros e Fernando pega nela como tal. “Hoje está desativada, não serve para nada”, comenta com um ar nostálgico. Foram várias as mortes neste conflito, mas o número ao certo não está apurado. Fernando está de consciência tranquila, por não ter feito mal a ninguém, “estou aqui a pegar numa arma, mas era só para a fotografia”, comenta. No entanto nem todos os militares podem dizer o mesmo.
A expressão “bala de branco não mata” difundiu-se pelas ruas de Bissau muito rapidamente, apesar de ser mentira. Para além das mortes de ambos os lados, muitos militares ainda hoje apresentam “danos físicos e psicológicos desse período, só mais recentemente reconhecidos pelas autoridades de saúde”, admite o especialista.
Fernando José recebia cartas da família e amigos. Para além disso, tinha uma madrinha de guerra que lhe escrevia, como era tradição. Hoje olha para a sua fotografia e não a reconhece. Ao vasculhar o álbum, encontra um postal de Natal, datado de 1967, enviado pelo Movimento Nacional Feminino, como forma de incentivo do regime para os militares. Com a garganta apertada de nostalgia, Fernando lê o pedaço de memória.
A vivência em camaratas com os “Solitários”, em Gadamael Porto, não foi o único isolamento que experienciou. Mudou-se para o quartel em Bissau onde trabalhou como faxina na messe dos oficiais. Nessa altura, “o conhecimento [acerca daquilo que se passava no mundo] era muito restrito”. Fernando José recorda os tempos mais difíceis em que ouvia rádio às escondidas, por vezes no seu posto, durante a noite, acompanhado dos camaradas. A informação que ouvia da Emissora Nacional nem sempre era confiável. O ex-militar só podia confiar naquilo que os seus grandes olhos castanhos viam, dado que a rádio era totalmente controlada pelo regime.
O investigador Pedro Aires de Oliveira refere este ambiente na messe dos oficiais como o mais propício para conversações revolucionárias: “Não é por acaso que o movimento conspirativo do 25 de abril começa a ganhar expressão nas conversas da messe dos oficiais na Guiné, em Bissau”. Descreve o governo da altura dizendo que “sacudia a água do capote”, colocando as suas responsabilidades políticas nas mãos dos militares e assentando o futuro da nação numa guerra para a qual tinham poucas expectativas.
“Olho para trás e penso que eles estavam a lutar pela liberdade deles e eu só fiz bem a toda a gente, não fiz mal a ninguém…e então dá-me alento”, confessa Fernando José.
Ao ler a antiga caderneta, que tem registado todos os movimentos feitos por si na sua carreira militar, lembra-se de um louvor que recebeu e onde falavam de si como tendo demonstrado “excelentes qualidades de trabalho”. Mesmo assim, nem as roupas que usou durante este tempo pôde guardar. Ao pousar em solo português, só teve tempo de matar saudades de amigos e familiares, incluindo a sua atual mulher. Rapidamente seguiu para Tancos para entregar o fardamento.
Agora, depois de alimentar os perus, vive a vida calmamente. Com a pressa da saudade, perdeu contactos dos muitos companheiros com quem tinha estado, “cada um regressou às suas terras”. De vez em quando vai buscar o álbum de fotografias para recordar uma vida que já passou, mas que nunca esquecerá.