É dia de tempestade na capital. O vento sacode o céu cinzento, que espreita pela janela, e a chuva cai com força balística. A tempestade recua, contudo, às portas do antigo Hospital Júlio de Matos: dentro daquele que é hoje o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, prepara-se uma embarcação. Mais do que um refúgio para a intempérie, este é um espaço de comunhão e terapia para quem precisa dele.
Com mais de 50 anos, o Grupo de Teatro Terapêutico (GTT) foi o primeiro do seu género em Portugal. Fundado em 1968, quando a ditadura do Estado Novo encenava uma primavera liberal, foi o primeiro ataque ao fantasma “Júlio de Matos”: uma expressão que ainda hoje é carregada de malícia. Num país onde a saúde mental era tabu, o grupo desbravou terreno para fundir arte e terapia.
“Eu antes dizia que era a pessoa mais tímida do mundo”: Jussub encontrou o GTT em 2018, graças ao seu psiquiatra. Quando fala de si próprio, fogem-lhe as palavras. Minutos antes, era impossível imaginá-lo fora de controlo: na pele da personagem Ismael, imediato do navio, cada palavra sua era uma ordem inadiável; agora, está sozinho na boca de cena. Olhos nos olhos, sem tripulantes a quem delegar as respostas, a sua voz treme. Ainda inseguro, ensaia uma gargalhada: “Agora, devo ser… para aí a segunda, só.”
Jussub tem honras de abertura em Linha d’Água, o espetáculo que o GTT estreia em fevereiro para celebrar os seus 50 anos. Mas não é – nem desejava ser – protagonista, um título cuja magnitude se reparte por todos os atores sem exceção. “Somos uma equipa”, assevera Jussub. “Estou logo a dar a cara pelo projeto ali à entrada, mas não vejo como se fosse um protagonismo, mal de mim se fosse isso. Depois, quando caísse, havia de ser pior.”
No seio desta família improvável, como são todos os grupos de teatro, a queda é pouco provável – e, se acontecer, será amparada. “Acolheram-me logo à primeira. Apresentei-me, continuei a vir todos os dias, assiduamente, e… ainda não parei”.
A fogueira coletiva
Debaixo de pés inquietos, a madeira range em antecipação: é o chão do Salão Nobre no Centro Hospitalar, que alberga o GTT, antes de um ensaio.
Os atores-pacientes formam um círculo. Convidados pelo encenador António Vicente, aquecem articulações e cordas vocais; alimentam uma “fogueira coletiva” onde queimam quaisquer hesitações. Por fim, sobem para o cenário de Linha d’Água: uma estrutura de madeira com níveis e desníveis, popas e proas. Embora a barca do GTT não se dirija ao inferno, começou por ser gil-vicentina: a peça seria um julgamento a bordo, para decidir quem seria digno de embarcar consoante a sua saúde mental. Eventualmente, com a orientação do dramaturgo e encenador André Carvalho, o grupo rumou noutra direção.
“Viagens reais ou não. Podem ser transformações que vivemos: mentais, emocionais, espirituais, o que quer que seja. Mas o foco é essa vontade e essa crença de mudar, de alcançar um lugar melhor ou [ser] uma pessoa melhor”, descreve André Carvalho. Linha d’Água tornou-se um espaço para os membros do grupo questionarem o seu passado, enquanto visualizam um futuro em conjunto. Onde a doença mental é uma realidade ponderada sem complexos – e não um empecilho.
A comemoração dos 50 anos do GTT é explícita em Linha d’Água, que recupera um mote tratado ao longo de toda essa história: o mito da normalidade. O que é ser normal? Como se define essa condição que a sociedade toma por garantido, na ótica de quem é marginalizado por não se enquadrar? Essas foram as questões-âncora de Limiar, uma das peças que levou ao sucesso do grupo junto do grande público, estreada no Teatro Nacional D. Maria II. Também uma de várias dezenas de obras que o GTT revisitou durante a conceção desta peça.
Mas não se trata apenas de um processo artístico: os atores são também pacientes e, antes de qualquer coisa, têm lugar as sessões de terapia. Entre membros e coordenadores do coletivo, dá-se uma partilha franca de dúvidas, euforias e conflitos internos. As vivências passam para o papel, que será mais tarde o seu guião: um método inspirado na prática da dramaterapia, importada pelo fundador do GTT, João Silva.
Terapia sem prazo de validade
Como é que o teatro pode ser terapêutico? “O processo de adaptação e de integração no grupo é facilitado pela própria dinâmica que já está instalada”, explica Isabel Cristina Calheiros, terapeuta ocupacional do GTT há quase 30 anos. “O grupo está misturado e há uma entreajuda. As pessoas com menos dificuldades ajudam as que têm mais e este sentimento de confiança uns nos outros é muito importante quando chega alguém [novo]”.
Os atores-pacientes chegam ao grupo por indicação médica e permanecem o tempo que for necessário ao seu percurso individual. A sua estadia pode durar vários anos, ou apenas um espetáculo. Não é fácil identificar um princípio e um fim para a terapia que aqui se faz: “é sempre uma constante”, aponta André Carvalho, um dos encenadores do grupo. “Se calhar podemos dizê-lo em relação a uma pessoa, mas não é o espetáculo que o define. É uma continuidade”.
Para além da terapia, a casa do GTT é palco de muitas vidas. De pessoas que por aqui passam, exploram, partilham, atuam e, assim, dão um pouco de si a estas quatro paredes. Nos meandros deste refúgio, o teatro permite explorar várias componentes psicoterapêuticas — a atenção, a concentração, o raciocínio e a memória são funções cognitivas inerentes ao trabalho do ator que os pacientes desenvolvem. Mas é na comunidade que tudo vai desaguar.
No decorrer dos dias de ensaios, geram-se atritos, a par de intimidade. “As competências de interação uns com os outros, o ser capaz de lidar com as situações afetivas e emocionais que aqui vão acontecendo”, destaca a terapeuta Isabel Cristina. “Trabalhamos isso tudo, porque estão aqui pessoas: zangam-se umas com as outras, refilam, algumas são chatas, há outras que se calam e que aceitam sempre tudo, mas que depois explodem. É como na nossa vida, encontramos as pessoas todas”, acrescenta.
Meio século de histórias nas mãos de um mestre
Foi esta dinâmica de grupo, de raízes bem fixas no chão, que João Silva manteve viva ao longo de 50 anos ao leme do Grupo de Teatro Terapêutico. Olhos vivos, cabelo branco desalinhado e uma expressão circunspecta desenham o rosto do velho encenador. Acompanhou o projeto desde o primeiro momento até à forma que hoje apresenta. A sua história de vida existe entrelaçada com a do GTT, até à sua morte, em 2018.
“Quando a família estava a florescer, e tanto o André quanto eu estávamos a aprender cada vez mais, dá-se a fatalidade de perdermos o nosso mestre”, conta António Vicente, encenador e parceiro de André Carvalho nos últimos dois anos. Coube-lhes a tarefa de continuar o método inventado por João Silva e dar um novo rumo a meio século de memórias. Linha d’Água representa o choque destes dois mundos: às lembranças que a peça evoca, junta-se o cunho pessoal dos encenadores, que se estreiam pela primeira vez na direção do grupo.
A viagem regressa à primeira lembrança. Em 1968, em pleno Estado Novo, o Hospital Júlio de Matos existe sob a forma de “manicómio”. É dentro deste edifício fechado que dois psiquiatras vão propor a um grupo de amigos e profissionais do espetáculo a criação de um grupo de teatro experimental com os pacientes. João Silva participa, a par de outros voluntários. O texto escolhido é Óleo, de Eugene O’Neill, e a peça é apresentada no salão nobre, para os trabalhadores e residentes no hospital. Esta experiência planta a semente que vai dar origem ao Grupo de Teatro Terapêutico, o primeiro do género em Portugal.
“A grande determinação e, no fundo, quase que uma missão que o João abraçou, a vida dele quase toda, foi o que permitiu ao GTT resistir. Porque ele começou com 20 e tal anos e esteve aqui até à véspera de falecer”, recorda Isabel Cristina.
Nos anos seguintes, o grupo resiste às intempéries. A instabilidade financeira quase leva ao fim do projeto e um texto chumbado na censura impede a representação desse ano. O trabalho de João Silva, por vezes não pago, permite manter a chama acesa, até que o próprio hospital assume as despesas do grupo como serviço de psicoterapia, em 1978.
Quebrar o tabu, um palco de cada vez
Rita é atriz no GTT há oito anos. Rápida no discurso e no pensamento, fala sem pausas nem hesitações. Emociona-se com o texto da peça, quando as palavras lhe tocam de perto. Durante o seu percurso, o grupo ajudou-a a melhorar a relação com a família. “Isto é um trabalho de confiarmos uns nos outros, porque às vezes são ditas coisas que não são ditas lá fora”, conta.
A missão de antes mantém-se inalterada. Para os membros do grupo, este é um porto seguro, livre de preconceito. “Há uma distância entre as pessoas normais e anormais, nós não somos anormais, mas também não somos como qualquer pessoa que vai aí na rua”, afirma Rita. O salão nobre é um espaço sem julgamento, mas é fora dele que o grupo quebra mais barreiras.
Nas apresentações ao público, o combate ao estigma da doença mental amplifica-se. Do começo do trabalho até à apresentação da peça final, o processo terapêutico percorre várias fases para chegar a ponto-pérola — e ser dado a provar ao público na plateia, que se vê, também ele, envolvido na terapia. As memórias levadas a palco, afinal, podem ser de qualquer um de nós.