Entrevistar pessoas é o que um(a) jornalista mais faz. O essencial do trabalho de pesquisa de informação, com vista à notícia mais simples ou ao dossier mais elaborado, faz-se, sobretudo, fazendo perguntas, falando com pessoas. Falando com o presidente e com o arrumador; com a professora e com a servente; com o deputado e com a autarca; com a cabeleireira e com o motorista; com novos e com velhos; com ricos e com pobres; com quem tem facilidade de expressão e com quem não; com cultos e com menos cultos; com… com… com… E com todos, e com todas, deve o jornalista “saber” falar. Desde logo, sabendo ouvir. Depois, sabendo perguntar. E sabendo conduzir uma conversa, um diálogo, para atingir os objetivos pretendidos. Não é fácil. Exige treino, reflexão, sensibilidade humana e profissional, bom senso, cuidado, respeito. É toda uma técnica – e, quase apetecia dizer, toda uma arte.
Mas quando falamos de entrevistas nos meios de comunicação social, falamos daquelas conversas que se desenvolvem mais formalmente em modo pergunta-resposta e que se destinam a ser publicadas / difundidas como tais – seja no jornal, no espaço online, na rádio ou na televisão. É um género jornalístico dos mais comuns e dos que mais têm impacto na opinião pública.
Quando as entrevistas são para publicar na imprensa, nós só lemos o relato escrito pelo jornalista, não sabemos como se passaram as coisas. Mas quando elas se fazem na rádio ou na televisão, muitas vezes em direto, nós não estamos apenas a ouvir/ver o que diz o entrevistado; estamos também a ouvir/ver o que diz o jornalista – e como o diz. Ele passa a ser também ator, ao vivo, daquele encontro (deveria dizer confronto?…) entre duas pessoas. E nós podemos apreciar o que se passa, acabando por avaliar frequentemente tanto a prestação do entrevistado como a do próprio entrevistador. Não faltam exemplos recentes.
Há muitos estilos de entrevistador(a). Há os mais “adversariais” e os mais suaves. Há os mais serenos e os mais aguerridos. Há os mais empáticos e os mais frios. Há os mais calmos e os mais apressados. E por aí adiante. Há mesmo quem, ao longo dos anos, tenha cultivado uma certa “imagem de marca” de entrevistador(a) temível, com a garantia quase certa de que nunca as conversas que conduz se ficam por meias-tintas ou falinhas mansas. Opostamente, há também quem prefira afirmar um jeito de entrevistar mais calmo, mais coloquial, em tom de conversa menos crispada ou inquisitorial. E há fãs de uns e de outros, como vamos vendo nos comentários, sobretudo pelas redes sociais.
Seja qual for o estilo, uma coisa é (deveria ser) certa: numa entrevista, a personagem central é o entrevistado – não o entrevistador. É o entrevistado que queremos ouvir, são as suas opiniões/revelações que queremos conhecer.
E as perguntas do entrevistador devem servir exatamente esse propósito: levar a que o entrevistado esclareça factos ou opiniões, revele coisas desconhecidas, explique por que fez isto ou não fez aquilo. Ora, frequentemente assistimos a alguma confusão destes papéis, com o/a jornalista a assumir o centro da cena, a explanar as suas próprias opiniões, a não deixar o entrevistado dizer duas frases seguidas, a interromper raciocínios de modo ríspido, a transformar a conversa numa inquirição quase policial, a deixar cair remoques aqui e sarcasmos ali. E nós chegamos ao fim desta espécie de embate e o que se vai discutir não é a substância do que foi dito; é “quem ganhou”, é quem “deu uma tareia” a quem, é quem “chegou” para quem. Quase como quando há um debate eleitoral entre dois políticos, que estão ambos no mesmo plano e que se envolvem num frente-a-frente para ver quem se sai melhor face ao público.
Mas, numa entrevista, o jornalista e o entrevistado não estão no mesmo plano, não têm intervenções da mesma natureza, não têm idêntico protagonismo. Há que desfazer esse equívoco. Numa entrevista, a personagem principal deve ser sempre a pessoa entrevistada – para o bem e para o mal. Se não o é, e se é o entrevistador a transformar-se na “estrela do show”, algo de essencial falhou. No que tem a ver com jornalismo, claro. Há frequentemente alguma confusão entre o que significa ser firme, assertivo, acutilante, e o que é ser apenas arrogante, petulante ou gratuitamente agressivo. Todos gostamos, sobretudo quando estão em causa personagens polémicas da cena política, de ver entrevistas claras, diretas, incisivas, bem preparadas, para que o diálogo não se fique por uma conversa mole que nada esclarece e nada acrescenta. E nem sempre é fácil levar uma entrevista a bom porto – ou seja, chegar ao fim e reconhecer que ficámos a saber mais do que sabíamos antes dela. Mas, se é esse o propósito, então tudo deve ser conduzido nesse sentido.
Discussões sobre detalhes, interrupções constantes, remoques deselegantes, jogos de gato e rato, perguntas mais longas do que as respostas, um tom de descabida sobranceria, tudo isto pode fazer da entrevista um curioso momento de espetáculo, mas dificilmente serve o seu propósito inicial. Desvia-se do ambiente que deve ser o do jornalismo e passa para domínios de quase entretenimento, por culpa de quem conduz a cena (e a ocupa toda…).
Há muitos séculos, Aristóteles elaborou sobre a ética e sobre as virtudes que devemos cultivar. Um dos aspetos que salientava era o de que uma virtude se pode transformar num “vício”, quando existe por defeito ou por excesso. Exemplificando: a coragem é uma virtude, mas coragem a mais pode significar imprudência e coragem a menos transforma-se em cobardia. Ou: auto-confiança é algo virtuoso, mas confiar em demasia faz-nos arrogantes e confiar de menos amarra-nos à timidez. É no meio que está a virtude, ensinava ele, cunhando uma expressão que continuamos a usar ainda hoje. Nem de mais, nem de menos. O equilíbrio. A medida justa.
Eis uma reflexão que se aplica bem às artes e técnicas de entrevistar. Como às de viver…
Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.