Uma espécie em vias de extinção?

Joaquim Fidalgo, provedor do REC

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Joaquim Fidalgo
Joaquim Fidalgo, provedor do REC

“Sejamos francos: há muito quem se mostre cético, e por muito respeitáveis razões, quanto à figura do provedor (…)”. Assim começava eu, há pouco mais de 20 anos, o primeiro texto que escrevi enquanto Provedor do Leitor do jornal PÚBLICO. Era um tempo estimulante neste domínio: os principais jornais diários do país tinham um provedor, a rádio e a televisão públicas preparavam-se para lá chegar, até uma ou outra publicação on-line mais inovadora fazia também a experiência. No plano internacional, os provedores eram às dezenas, marcando presença nas principais publicações de referência, tanto na Europa como na Ásia e nas Américas. Havia até – aliás, continua a haver – uma associação mundial de provedores dos média, muito dinâmica e participada, responsável por um encontro anual de debate e troca de experiências: a ONO.

Mesmo assim, esta figura era encarada com algum ceticismo, quer porque muitos duvidavam da sua real eficácia para promover mudanças nas práticas menos recomendáveis da imprensa, quer porque se questionava a sinceridade genuína que levava (e por que raio?…) jornais a contratarem pessoas para o criticarem nas suas próprias páginas! Não se limitaria tudo, afinal, a uma bem urdida estratégia de marketing, apenas para fazer de conta que as empresas se preocupavam com o que dela pensavam e diziam os leitores / ouvintes / espectadores?…

Nos anos mais recentes, as coisas regrediram um pouco. A figura do “ombudsman” – ou “mediador”, ou “ouvidor”, ou “defensor”, ou “advogado do leitor”, como é denominada noutras paragens – foi-se tornando mais rara. Veja-se o exemplo de Portugal, onde apenas subsistem um Provedor do Ouvinte e um Provedor do Espectador, na rádio e na televisão públicas, tendo a função desaparecido de todos os demais órgãos de Comunicação Social. E o panorama não é muito diverso noutras latitudes. Aparentemente, o ceticismo e as reservas do passado apenas aumentaram. Ou…?

Há a crise, claro que há a crise. Faltam leitores, falta audiência, falta publicidade, faltam receitas, falta dinheiro. E em tempos de crise, o que é que se corta primeiro? O supérfluo, o acessório, o “não essencial”. Ora, há muito quem pense, ao nível das administrações e direções de média, que a função de provedor não é propriamente uma função essencial. Se os tempos vão mais de despedir jornalistas, de contratar e manter precariamente, de só aceitar tarefeiros “à peça”, de reduzir as redações ao osso, como aceitar que se contrate e se pague um provedor? Porque um provedor, a bem dizer, não “faz” – não escreve notícias ou reportagens, não contribui para a agenda, não edita nem revê textos, não contribui nada, em termos práticos, para o produto que se difunde regularmente para o público. O provedor apenas vê, ouve, observa, pensa, interroga, analisa, critica, sugere, recomenda. Tudo atividades muito respeitáveis mas relativamente supérfluas, numa lógica quantitativa de apenas fazer, fazer, fazer. Atividades interessantes, sem dúvida, que dão prestígio à instituição, contribuem para uma boa imagem, mostram abertura à crítica e à auto-crítica, mas… em tempo de crise não pode haver tais “luxos”.

Muito do jornalismo que se faz nos dias de hoje, dias aceleradíssimos, de notícias ao segundo e de “dar primeiro” mais do que “dar melhor”, não deixam grande espaço para pensar. Tempo para pensar também é um “luxo”… Daí a importância de poder ter, numa equipa editorial, alguém que ajude precisamente a isso: a pensar, a questionar, a duvidar do que parece óbvio, a desafiar a lógica da manada, a dizer “não” quando seja o caso. Claro que todos os jornalistas sabem isto tudo, conhecem os princípios da profissão, os valores por que se regem, a ética por que se guiam, a deontologia a que juram fidelidade. O provedor não vem ensinar nada de novo. Vem, quando muito, recordar, introduzir uma pausa na vertigem do fazer, meter um grão de areia na engrenagem que começa a correr por si própria, desafiar as lógicas dominantes (mas nem por isso acertadas).

Depois há o outro lado, o das pessoas para quem o jornalismo trabalha, o dos públicos que são a sua razão de ser e que merecem, hoje, muito mais do que era costume dar-se-lhes. O público não é recetor, destinatário passivo – é parceiro no trabalho informativo. Tem direito a saber o que fizeram (e como o fizeram, e por que o fizeram) em seu nome. E o jornalista, simetricamente, tem o dever de lhe prestar contas, de lhe dizer por que fez o que fez, por que não fez aquilo que deixou por fazer, que critérios seguiu, que normas respeitou, que opções escolheu. “Accountability”, diz-se em Inglês. “Responsabilização”, “responsividade”, podemos dizer em Português. Tudo a fazer parte de uma exigência mais lata que é a da incontornável, inalienável responsabilidade social desta profissão. Uma profissão que só é credível e merecedora de confiança se for honesta, transparente e aberta à crítica. De todos nós.

Foi a pensar em tudo isto que aceitei, com gosto, o desafio de ser provedor do REC. É tudo isto que tenho como pano de fundo, na tentativa de contribuir para que o jornalismo que aqui se aprende e se faz continue a ser exigente, rigoroso, ponderado, sério, exemplar. Façam o favor de recorrer aos meus préstimos, fazendo-me chegar as vossas perguntas, dúvidas, discordâncias, críticas, sobre que procurarei refletir e escrever mensalmente. Sou todo ouvidos.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor.
É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.