Antes do 25 de abril, o jornalismo era contado sobretudo no masculino. Desde os anos 70, o que mudou? A profissão feminizou-se, mas os números continuam a apontar para a predominância masculina em cargos de direção e em áreas como o desporto. O jornalismo pela voz de mulheres que lutaram contra os preconceitos para ganhar espaço na profissão.
“Fico sempre muito aflita quando perguntam aquela pergunta sacramental: O jornalismo das mulheres é diferente do dos homens?”. Com vasta experiência em jornalismo de imprensa e de televisão, Diana Andringa continua sem resposta. A jornalista trocou a medicina pelo jornalismo ainda antes do 25 de abril e passou pelas redações do “Diário de Lisboa”, “Diário Popular” e “Vida Mundial”. Mais tarde, em 1978, dedicou-se ao jornalismo televisivo na RTP.
Começou numa época em que fazer jornalismo não era para mulheres. Essa era a opinião do seu diretor na revista “Vida Mundial”, onde teve de entrar como tradutora em 1968, por não lhe serem reconhecidas capacidades enquanto jornalista: “as mulheres não têm cérebro para fazer jornalismo, é conhecido, é conhecido que nós somos incapazes”, ironiza.
As origens das mulheres no jornalismo não são conhecidas com precisão. Sabe-se que a Imprensa Feminina na Europa surgiu no apogeu da Revolução Francesa e que nos EUA em 1886 havia pelo menos 500 mulheres jornalistas, mas só com as guerras mundiais é que as profissionais começaram a ganhar espaço. Em Portugal, o percurso das mulheres no jornalismo foi mais lento.
“Na redação do período antes do 25 de abril havia dois aspetos singulares: um é precisamente a escassez de mulheres, o outro era a existência de um telefone direto ligado à comissão de censura”, conta o Professor Mário Mesquita, atual vice-presidente do Conselho Regulador da Entidade Reguladora da Comunicação Social. Quando integrou o jornal “República”, em 1971, não havia mulheres na redação, à excepção da senhora Ermelinda “que ia lá fazer o almoço para o chefe de redação”.
O período ditatorial de quase 50 anos contribuiu para um atraso no acesso das mulheres ao Ensino Superior e a determinadas profissões. A entrada de mulheres nas redações começou por ser por via de suplementos juvenis, como no caso de Diana Andringa, e por laços de parentesco. Era comum que viúvas de jornalistas ingressassem nas redações pois conheciam o meio jornalístico e uma vez que não havia previdência social, esta era uma forma de se sustentarem.
Nalgumas redações, o recrutamento destas profissionais era visto como um bloqueio à utilização de um determinado “calão” utilizado por alguns jornalistas. Por vezes, chegava a existir segregação, fosse para “proteger” as mulheres deste vocabulário “grosseiro”, fosse para preservar a liberdade e forma de estar dos jornalistas homens.
Mário Mesquita recorda a entrada de Antónia de Sousa na redação do “República”, a primeira mulher a ingressar no diário. O jornal contava com cerca de vinte pessoas na altura e, segundo o vice-presidente da ERC, não houve reações negativas à sua entrada, afirmando que “se havia alguém misógino ou coisa assim engolia para dentro. Não havia espaço para isso”.
O processo de feminização da profissão em Portugal começou na década de 80 e ganhou força nos anos 90 do século passado. “Foi quando começaram a chegar às redações as mulheres, saídas dos cursos de comunicação e de jornalismo”, conta Mário Mesquita, que ainda se lembra de como era integrar uma redação sem mulheres.
Atualmente, segundo os dados de fevereiro de 2019 da Comissão da Carteira de Jornalistas, as mulheres com carteira profissional representam cerca de 41% do total dos jornalistas, percentagem relativamente constante na última década.
Para além dos jornalistas com carteira, a força de trabalho no jornalismo também inclui colaboradores e equiparados a jornalistas, onde as mulheres representam 16% e 14% respetivamente (dados de fevereiro de 2019).
Contudo, a professora Marisa Torres da Silva, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/NOVA), relembra que “os vários anos de evolução mostraram que não foi por haver mais mulheres nas redações que, por exemplo, os estereótipos de género foram combatidos”.
A investigadora refere que o género no jornalismo é tratado como uma “não questão”. Ainda assim, afirma que o género está presente de forma estrutural na vida do dia-a-dia, nas expectativas que se tem em relação ao papel da mulher.
No caso do desporto, a questão do género torna-se evidente: o número de mulheres nas secções de desporto é relativamente baixo e é onde se verifica uma maior imparidade de género. Cláudia Martins é jornalista da Antena 1 há doze anos nesta área e é a única repórter de campo feminina no país, mas não se sente especial por isso: “Eu não sou especial por trabalhar no desporto. Porquê? Porque a sociedade diz que as mulheres não percebem nada disto? Não acho que isso me torne especial. Pelo contrário, torna é a sociedade toda especial num péssimo sentido”. Para Cláudia, o número reduzido de mulheres nesta área é explicado em parte por estas não serem incentivadas a ter uma relação próxima com o desporto desde crianças.
Embora haja espaço para as mulheres, Cláudia Martins afirma que ainda existe uma desconfiança intelectual, mesmo por parte dos pares, e que isso se reflete no seu trabalho: “É difícil porque temos de provar dupla, tripla, quadruplamente o que sabemos e que sabemos fazer.” Na sua experiência, atingir credibilidade exige mais tempo e trabalho e a tolerância para errar é menor, o que se torna um entrave: “isso faz diferença, sim. Faz diferença porque nos cansa, mais cedo ou mais tarde, e o que nos apetece é mudar, não é?”
“Estar à altura para uma mulher é sempre mais exigente do que para um homem”, partilha Maria Elisa Domingues. Apesar disso, ser mulher não impediu que se tornasse a primeira diretora de programas da RTP em 1980, com 30 anos. Maria Elisa refere que as mulheres têm menor possibilidade de serem elegidas para determinados cargos por se presumir que têm mais responsabilidades na vida privada. Não obstante, mais tarde, voltou a assumir cargos de direção: “mas é claro que tive de sacrificar muito da minha vida pessoal”, afirma.
Ser jornalista implica, em muitos casos, trabalhar por turnos, fazer horas extraordinárias e, por vezes, deslocações. “Speedar” é o termo utilizado por Cátia Mendonça, jornalista infografista do “Público”, para descrever o seu estilo de vida. Desde que regressou ao trabalho depois de ser mãe, há cerca de um ano, foram poucos os trabalhos que assinou e que desenvolveu com profundidade.
Na viagem até à creche, com Matias ao colo, revela a dificuldade de conciliar a vida profissional com a familiar. Quando trabalha até mais tarde, este é o único momento em que está com o filho. A gestão vai sendo feita com o namorado, que tem flexibilidade no horário. “Temos que andar a revezar-nos e eu e o meu namorado somos muito coordenados. Fazemos uma escala em casa para consultar. Um bocadinho surreal, mas é verdade”, conta.
Antes de partir, Cátia despe o casaco ao filho, vê o que é o almoço e conversa um pouco com a educadora de infância. Ao despedir-se do pequeno Matias, desabafa que já só o vai ver quando estiver a dormir. É um dos dias em que trabalha até mais tarde: “é muito difícil para mim também porque por exemplo eu ontem não o vi”.
“Elas abandonam mais a profissão, bastante mais”, afirma Sofia Branco, atual presidente do Sindicato dos Jornalistas, referindo o estudo do ISCTE que tem vindo a ser desenvolvido desde 2016, aquando do último Congresso dos Jornalistas. A jornalista candidatou-se com um coletivo à Presidência do Sindicato e recorda que toda a gente achou que era uma boa ideia candidatar-se outra vez uma mulher, “porque só tinha havido uma, que foi a Diana Andringa; até porque a profissão estava a feminizar-se, portanto, também era uma resposta a isso”, explica.
Atualmente, com a feminização da profissão, as mulheres ocupam cada vez mais cargos de chefia. Sofia Branco refere que “as mulheres (…) são mais editoras, por exemplo, ou chefes de redação até, mas não estão nas chefias de topo ainda”.
No panorama de diretores de informação, dos vinte totais, quatro são mulheres – Maria Flor Pedroso, da RTP, Luísa Meireles, da Lusa, Mafalda Anjos, da Visão, e Graça Franco, da Renascença. Representam 20% da direção de informação, o que nas palavras da presidente do Sindicato “é uma percentagem dramática”.
Para Maria Elisa, as quotas são uma opção a considerar. “Se há esses impedimentos, se há essas barreiras que até são só mentais, «não porque ela é mulher, fica mais dependente da casa, dos filhos», acho que é completamente lógico e às vezes a única solução”, defende.
A jornalista refere que o argumento de a mulher dever impor-se por si própria não é suficiente para equilibrar o panorama dos cargos de direção pois não se trata de uma questão de competência: “Sabemos perfeitamente que somos tão competentes como os homens. Não somos iguais. Isso é uma fantasia. Não temos que ser. Agora, em termos de competência, de capacidade de trabalho, somos iguaizinhas. Portanto, temos que ter o mesmo acesso, temos que ter a mesma possibilidade de sermos também nomeadas para lugares de chefia”.
No fim dos anos 1940, Simone de Beauvoir afirmou: “On ne naît pas femme, on le devient” (“Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres”). A afirmação procurava pôr em causa a utilização da biologia para explicar as diferenças sociais entre os géneros, olhando para o “ser mulher” como uma construção social e cultural. Longe do tempo em que o jornalismo era exclusivo ao género masculino, as mulheres jornalistas ganharam espaço nas redações, mas ainda há um caminho a percorrer.